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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

A Covid-19 e o sentido da existência humana

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Por Redação
Atualização:

Gustavo Andrey de Almeida Lopes Fernandes é economista, professor do Departamento de Gestão Pública da EAESP-FGV. Adriana Cristina Ferreira Caldana é psicóloga, professora do Departamento de Administração da FEA-RP/USP.

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A pandemia do coronavírus parece colocar em cheque um dos maiores paradoxos do capitalismo a necessidade crescente de cooperação, num universo de profunda competição entre pessoas, empresas e países. Neste dilema, como conciliar a necessidade de receita imediata para manter o negócio com o imperativo do distanciamento social? Abrir e não falir, fechar e não morrer... seria realmente esse o dilema?

Edward Wilson, famoso sociobiólogo, elaborou uma intrigante teoria para compreender o aparecimento de sociedades complexas como a nossa. No processo evolutivo que nos produziu, duas forças teriam se manifestado em direções opostas. De um lado, a seleção do ponto de vista individual, em que indivíduos concorrem com outros do mesmo grupo. Nessa força, muito mais conhecida pelo grande público, estaria a ideia do gene egoísta, uma base natural para a ideia de competição para lucrar. A máquina do capitalismo.

No entanto, para Wilson, há uma segunda força igualmente importante para a evolução que atuaria no nível dos grupos de indivíduos. Em direção contrária, ela fomentaria a cooperação, ou seja, o gene altruísta. Sem ela, estes grupos não conseguiriam sobreviver aos desafios impostos pela natureza. Sucintamente, em suas palavras, "dentro dos grupos, indivíduos egoístas se impunham aos altruístas; grupos de altruístas, porém se impunham aos grupos de egoístas" (O sentido da existência humana, p. 25, Cia. das Letras).

Essas poderosas forças em permanente paradoxo permitiram o aparecimento de um seleto grupo de espécies extremamente complexas e sociais: formigas, abelhas, cupins, etc. e, nós, seres humanos. Assim, a ênfase por sobrevivência de nossa espécie estaria baseada na inteligência social, comunicação e cooperação, em um conflito eterno entre egoísmo individual e altruísmo coletivo. No entanto, no nível grupal a relação predominante é o altruísmo.

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O atual momento retrata de forma precisa esse paradoxo.

O coronavírus é, do ponto de vista biológico, um predador de nossa espécie. Um elemento fundamental para o funcionamento da natureza, pois delimita o crescimento populacional. Do ponto de vista psicológico, nos desperta do nosso narcisismo antropocêntrico, relembrando que somos uma espécie e temos sim predadores. No caso, uma estrutura biológica extremamente simples e eficiente, destituída de propósito, excetuando-se existir e se multiplicar.

Esta é uma crise, portanto, essencialmente distinta das usuais, que decorrem geralmente de fenômenos organizacionais das formas de produção de nossa espécie.

Como sociedade contudo, havíamos esquecidos de momentos como o atual. O engenho humano, com sua capacidade de atuar coletivamente, permitiu que boa parte de nossos predadores fossem afastados. Potentes antibióticos nos tornaram mais fortes contra terríveis bactérias. Vacinas criaram barreiras quase que intransponíveis para vírus. Nosso altruísmo permitiu a instituição de estruturas de ação coletiva, produzindo bens fundamentais para manter nossos predadores afastados, como saneamento básico e comida em abundância, por exemplo. Em um século, a população humana se multiplicou. Prosperamos como nunca.

Evidentemente, tais avanços não se distribuíram homogeneamente no mundo. No caso brasileiro, por exemplo, predadores como dengue, cólera, conseguem ainda se manifestar de forma relevante, ceifando a vida de muitas pessoas. Os chamados bens públicos são, na prática, ainda escassos. Escolas, hospitais ao invés de estarem disponíveis para toda a população, na sua falta, acabam por ser mecanismos de perpetuação de desigualdade. Dentro do grupo, um nível exacerbado de egoísmo, concretizado na nossa atual estrutura social como uma brutal desigualdade, criou subgrupos protegidos destes perigos naturais.

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O coronavírus, contudo, rompeu tais barreiras. Um vírus extremamente contagioso, ignora muros de condomínios particulares, entupindo hospitais de ponta em regiões tão ricas como a Comunidad de Madrid, Lombardia e agora na bilionária Nova Iorque. Acuados, como espécie, estamos tentando nos defender. De uma hora para outra, o combalido SUS passou a ser objeto de investimentos. Hospitais de campanha estão sendo montados. Isolamento geográfico e comunicação virtual total.

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Desde a gripe espanhola de 1917, nenhum predador se levantou de tal forma. O vírus, por seu alcance sócio econômico democrático, talvez seja uma oportunidade única, para despertamos de nossa vaidade de espécie singular. Talvez, a pandemia nos conscientize que por mais que nossa mente acredite que tenhamos dobrado a natureza, os fatos se impõe, deixando claro que a parte jamais será maior do que o todo. Somos apenas uma face da natureza.

Não é hora para egoísmo, travestido de uma falsa preocupação socioeconômica. A ciência aponta isso de várias formas. Por exemplo, artigo publicado recentemente mostra que os locais nos EUA que apostaram em uma resposta mais forte de isolamento social na gripe espanhola tiveram a recuperação econômica mais rápida (vide - Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 flu).

Além do mais, se é a nossa ação altruísta autêntica que nos permitiu chegar onde chegamos, é a nossa força de cooperação que nos levará para além de nosso predador. Assim devem se pautar as nossas ações. Bilhões de anos de evolução assim ensinam.

E como isto nos impacta em nossa organização como sociedade, como empresas?

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Em todos os lugares parece haver um novo chamado no ar. Um chamado de integração da espécie humana com a natureza do planeta. Um chamado da responsabilidade que líderes empresariais e governamentais precisam assumir. Diversos estudos acerca de sustentabilidade corporativa já vinham direcionando esse raciocínio, apontando a necessidade urgente de achatar a curva de emissões de carbono, para lidar com a crise climática e continuar a habitar a Terra.

Nesse atual período pandêmico, alguns já notam o céu mais claro em Shanghai e rios mais límpidos em diversas regiões do globo, a Terra respira enquanto a espécie humana reflete e busca soluções. Mas ainda permanece a dúvida se passada a crise a lição será aprendida ou se antigos hábitos de produção e consumo serão simplesmente retomados.

Quando as indústrias voltarem a carga, os líderes seguirão no famoso business as usual ou haverá uma alteração de valores, com cadeias produtivas que consideram todos os sistemas da vida como prioridade? Conseguiremos finalmente entender o papel fundamental do altruísmo para a evolução da nossa espécie ou mergulharemos em um egoísmo limitante?

Junto a essa questão do que virá, acompanha-se diariamente a reinvenção de modos de ser e de trabalhar.

Essa é uma crise que traz como aspecto central a discussão do que é realmente essencial para a vida. Ainda no olho do furacão, pessoas reaprendem a produzir e criar conexões com o que realmente importa. Em tempos de home office, empresas e pessoas reaprendem sobre relações de trabalho e equilíbrio trabalho-família. Há esperança nas relações de cooperação emergentes e nas negociações de preço justo.

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Após esse período, surgirão novas tecnologias, novos modos de curtir a vida e de produzir aquilo que é realmente essencial para viver. O sentido de comunidade global e agir local ficará mais claro, ao mesmo tempo em que cuidamos de nossos valores e das nossas relações imediatas. O desacelerar atual precisa ficar em todos como aprendizado perene. O que de fato é preciso consumir? Como produzir de maneira mais ambientalmente equilibrada e socialmente justa?

Iremos finalmente resolver tais questões?

Esse é o momento da transformação das relações homem e natureza. Momento de valorizar a vida e repensar o mercado como força invisível que tudo controla. Ações emergenciais para socorrer os mais vulneráveis até há pouco eram simplesmente impensáveis no Brasil, agora parecem finalmente possíveis. Estamos vivenciando um imenso experimento social.

Isso remente a reflexões sobre as armadilhas da meritocracia, mensurada tão somente em capacidade de competir, deixando de lado a natureza cooperativa da nossa espécie.

No jogo do mercado de trabalho, já há muito tempo se observa duas categorias de profissionais: os plenamente incluídos na economia do conhecimento (chamados talentos) e os que são meramente força de trabalho a ser substituída, assim que a tecnologia e a inteligência artificial permitirem. À luz da pandemia, já há um novo olhar surgindo. Muito se fala da calamidade dos trabalhadores precarizados, mas já é possível pensar também se os plenamente incluídos no atual jogo de meritocracia, que exige longas jornadas de trabalho e distanciamento da família, estavam realmente se sentindo felizes. Hoje a reflexão sobre o que nos torna humanos está aflorada e isso certamente deixará marcas nas relações pessoais e profissionais para além da crise.

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Há uma intensa reinvenção do ser humano em curso. A permanente construção de algo altruísta, como bem demonstrou Edward Wilson, é o maior sentido da existência humana.

 

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