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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

A corrupção nos tempos da COVID-19

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Por Redação
Atualização:

Ligia Maura Costa, Advogada e Professora Titular do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da FGV-EAESP.

 

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O mundo enfrenta uma crise de saúde sem precedentes. Ela afeta os países desenvolvidos e em desenvolvimento, simultaneamente. Com a rápida disseminação do vírus SARS-CoV-2 e da sua doença a COVID-19, a saúde da população é a prioridade máxima de todos os governos. A origem do vírus nos leva à corrupção no comércio ilegal de animais selvagens, ocorrida num mercado em Wuhan, China. Como justificar a outorga recente de alvará sanitário ao dito mercado? Teriam os inspetores fechado os olhos, diante de uma volumosa propina? Um mundo atordoado assiste de perto os esforços para o combate ao vírus. Nessas circunstâncias, é fundamental que a corrupção não seja ignorada.

Presente em todos os lugares do mundo, a corrupção é especialmente grave no setor da saúde, pois impacta o fim da vida dos seres humanos. A corrupção persiste mesmo durante as pandemias. Infelizmente, alguns verão o surto pandêmico como uma oportunidade única de aproveitar as medidas emergenciais de combate à COVID-19 para abusar do poder público, em benefício de vultosos ganhos privados. Licitações fraudadas, cartéis, recebimento de propinas, desvio de materiais, tratamentos desnecessários e favorecimento de parentes e amigos são algumas ilustrações de condutas corruptas que apesar de serem alvos de leis anticorrupção, podem minar a resposta governamental à pandemia, privando milhares de pessoas dos necessários cuidados médicos. Nos tempos da COVID-19, cada uma dessas práticas corruptas representa um grande desafio à saúde.

No mundo todo, o setor da saúde é considerado como um dos principais alvos da corrupção. Em condições normais e não pandêmicas, a corrupção na saúde gera perdas anuais superiores a US$ 500 bilhões de dólares norte-americanos, segundo a Transparência Internacional*. No  Brasil, se pode dizer que há um ambiente propício para a prática de atos de corrupção. Um dos maiores escândalos no país foi o da "Máfia dos Sanguessugas" em 2006, que fraudava a compra de ambulâncias nos municípios. Mais recente, um outro grande escândalo de corrupção foi o da "Máfia das Próteses", que fraudava aquisições de próteses em especialidades como ortopedia, cardiologia, neurologia e odontologia. A corrupção na saúde pode acontecer nos diferentes elos da cadeia, dada a diversidade e multiplicidade dos atores: planos e sistemas de saúde, hospitais, fornecedores de suprimentos, pacientes, profissionais da saúde e governos, no caso do Brasil federal, estadual e municipal. Deste modo, o sistema de saúde abarca uma extensa sequência de relações entre os diferentes atores que são todas elas suscetíveis à corrupção. A complexidade da cadeia da saúde dificulta o combate à corrupção. De fato, não há uma abordagem única para combater a corrupção no setor da saúde.

Uma pandemia tão extraordinária como a da COVID-19 tende a expor ainda mais as falhas estruturais dos sistemas de saúde, com destaque para os riscos potenciais de práticas corruptas. O volume de recursos investidos na saúde em decorrência da COVID-19 faz com que o ambiente seja ainda mais suscetível à corrupção, perpetrada pelos agentes públicos e privados. A necessidade de uma resposta rápida no combate à doença e ao vírus e a disponibilidade de valores significativos só aumentam esses riscos. A corrupção na saúde traz, porém, um paradoxo: apesar dos altos montantes "perdidos" em razão da corrupção, o setor não conta com os necessários instrumentos de accountability e transparência. Os procedimentos anticorrupção precisam garantir que a ajuda governamental para combater o vírus e a doença seja bem utilizada e beneficie aqueles que mais precisam, a população mais pobre e carente. Auditorias realizadas durante a epidemia de Ebola na África demonstram porém que os procedimentos anticorrupção nas compras de materiais e equipamentos médicos foram totalmente ignorados.

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A COVID-19 necessitará de importantes investimentos para as compras de suprimentos médicos e equipamentos de proteção individual, em especial para as unidades de terapia intensiva. O risco de práticas corruptas é exponencialmente mais elevado, diante da demanda pelos equipamentos e da sua escassez. É fundamental que os procedimentos de controle para práticas anticorrupção sejam utilizados e priorizados. Portanto, devem ser feitos esforços conjuntos de monitoramento e acompanhamento do uso desses recursos, a fim de garantir que eles não sejam desviados e representem indevidamente um ganho privado em detrimento do público. A trajetória do vírus SARS-CoV-2 e o potencial da COVID-19 tornam a agenda de integridade no setor da saúde ainda mais importante do que nunca. Parafraseando o clássico O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marques, bastou um interrogatório insidioso para comprovar uma vez mais que os sintomas da corrupção são os mesmos do vírus**.

* Corruption and the coronavirus, Transparency International, https://www.transparency.org/news/feature/corruption_and_the_coronavirus.

**** Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera, Ed. Record, 2009, pp. 81 e 82.

 

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