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Vulnerabilidade de menor de 14 anos deve levar em conta realidade social

Por Daniel Gerber e Ana Manuela Oliveira Nepomuceno
Atualização:
Daniel Gerber e Ana Manuela Oliveira Nepomuceno. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No último dia 25 de agosto de 2021, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a presunção de ocorrência de estupro de vulnerável no caso de adolescente condenado por manter relações sexuais com menor de 14 anos.

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Indo de encontro à própria tese fixada em sede de julgamento de diversos recursos repetitivos, o STJ trouxe para os operadores jurídicos um sentimento de alívio na medida em que aceitou incorporar à causa de decidir as circunstâncias do caso concreto.

Com esse novo entendimento, surge a necessidade de profunda reflexão sobre o desenvolvimento e o contexto social brasileiro e a realidade vivida por muitas crianças e adolescentes do país. Esses elementos exteriores à norma eram solenemente afastados nos julgamentos de casos similares.

Até esta decisão proferida pela 5ª Turma, na jurisprudência dos tribunais o consentimento do indivíduo menor de 14 anos era visto, com exclusividade, por uma ótica psicológica. Segundo os estudos realizados neste âmbito, uma criança/adolescente com menos do que 14 anos não possui pleno entendimento das consequências e do real significado que o seu consentimento tem para o início de uma relação sexual.

Significa dizer que por mais que o jovem goze de suas faculdades mentais quando expressa sua concordância com o ato, este não possui, cientificamente, desenvolvimento psicológico suficiente, em razão da idade, para mensurar a repercussão de seus atos na sua sexualidade e percepção do próprio corpo.

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Desse modo, Poder Judiciário vinha entendendo que, independentemente de consentimento da vítima e sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso, o agente que praticasse conjunção carnal com pessoa menor de 14 anos estaria incurso no delito de estupro de vulnerável.

Todavia, relativizando o conceito clínico e buscando a realidade das ciências sociais, o Tribunal acabou apontando para a realidade brasileira. Muitas pessoas, principalmente mulheres e integrantes de famílias de classes mais baixas, por diversas vezes, são obrigadas a se desenvolverem precocemente.

Em inúmeras oportunidades, aos adolescentes são impostas obrigações de adultos, como cuidarem de seus irmãos, trabalharem fora de casa, deixarem os estudos, até mesmo assumirem casamentos arranjados pelos pais por razões financeiras.

Isso demonstra, inegavelmente, que o ambiente onde se desenvolve o jovem pode ser de uma realidade diferente da considerada ideal por parte da sociedade - longe do dever ser, meta esta inalcançável diante de fatos concretos. Neste contexto, em favelas e cidades interioranas, onde usualmente os jovens assumem grandes responsabilidades, não podendo contar com o acompanhamento frequente de seus pais - os quais precisam trabalhar incansavelmente para prover o sustento -, a iniciação sexual, assim como aos demais elementos da vida adulta, costuma ser mais cedo.

Tem-se, por óbvio, que nem todas as crianças e adolescentes percorrem o mesmo caminho de desenvolvimento psicossocial. Assim como concluiu Jean-Jacques Rousseau que "o homem é produto do meio", o cenário social do jovem o transforma, tornando-o aquilo que ele de fato é.

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Nesse contexto, a tipificação do crime de estupro de vulnerável deve perpassar por um estudo mais abrangente, sobretudo ao consideramos que o ser humano se molda por fatores de caráter biológico, psicológico e social. Ainda que se estabeleça um parâmetro psicológico que fixe a idade de 14 anos como sendo limite à concretização da vulnerabilidade, há de ser feita, de forma conjunta, uma análise social, a fim de se entender se a idade estipulada psicologicamente condiz com a vivência social. A presunção de vulnerabilidade, portanto, jamais há de ser absoluta quando observada apenas a idade da vítima.

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Pelo contrário, tal traço - vulnerabilidade - é um conceito amplo, que incorpora ao indivíduo a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas ou situações. Legalmente, dentro desse grupo estão crianças, adolescentes, pessoas com doença mental, com embriaguez, em hipnose, com enfermidades, idade avançada, pouca ou nenhuma mobilidade de membros, perda momentânea de consciência, deficiência intelectual, má formação cultural, miserabilidade social, sujeição a situação de guarda, tutela ou curatela, temor reverencial, enfim, qualquer caso de evidente fragilidade.

Não obstante seja absolutamente legítima a proteção do Estado em tais dimensões, o consentimento do tido como vulnerável no crime de estupro demanda discussão que invade a esfera privacidade e o direito de decisão do indivíduo sobre seu próprio ser.

Ressalte-se que o objetivo do debate não é descaracterizar o delito, muito menos descartar as inúmeras situações em que o crime é verdadeiramente cometido sem que a vítima possa resistir na medida em que ausente o preparo psicológico para tanto. O intuito é trazer ao campo da reflexão o fato de que em alguns casos, talvez, as pessoas envolvidas realmente saibam o que estão fazendo.

Vamos além. Se em algum desses casos, assim como no julgamento da 5ª Turma do STJ, o maior e a criança de 14 anos contraem o matrimônio, inclusive tendo filhos, como será feito o processamento deste delito? A família será separada, os filhos verão seus pais divorciados ou, ainda, presos? A aplicação da lei, no caso concreto, se coaduna com sua real destinação?

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Inegável que a norma exige o mínimo de objetividade e que, diante dos fatos e casos encarados, foi necessário fixar limites certos e determinados, incluindo-se aí a edição da Súmula 593: "O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente".

Não obstante, e segundo pesquisa realizada pela UNESCO, em 2004, os jovens do sexo masculino costumam iniciar as atividades sexuais entre 10 (dez) e 14 (quatorze) anos, principalmente nas cidades de Manaus (70%), Salvador (68%) e Belém (66%). Já em Porto Alegre (39%) e São Paulo (34%), o sexo feminino é que inicia a vida sexual com essa idade. No Distrito Federal, 61,6% dos homens iniciam na atividade sexual com menos de 14 (quatorze) anos, enquanto 21,9% das mulheres iniciam nesta faixa estaria.

Praticamente metade da população entrevistada afirmou ter praticado relações sexuais com menos de 14 anos, tendo sido consequência, segundo eles, principalmente da maior liberdade conferida aos jovens nos tempos atuais, constantes insinuações sexuais veiculados pelos meios de comunicação que são de fácil acesso e a falta de orientação sexual, tanto pelas famílias quanto pelas escolas.

Isso demonstra que tanto os legisladores quanto os magistrados - especialmente os ministros que fixam entendimentos - precisam observar, cada vez mais, o momento sociocultural vivido e não apenas critérios científicos como os advindos dos estudos psicológicos, ainda que estes sejam elementos primordiais.

O que não se pode fazer é tratar os jovens brasileiros, inseridos numa sociedade desenvolvida a partir de um histórico específico, como se fossem iguais aos outros jovens dos demais países. Ainda que a ciência médica diga que menores de 14 anos não possuem capacidade de consentir conscientemente com o ato sexual, a ciência social pode mostrar o contrário. Há que se buscar, portanto, na análise global do caso, a resposta adequada ao problema.

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Desse modo, a depender do caso em análise, o jovem pode sim ter consciência moral e sexual sobre sua própria vida, devendo ter o direito de exercer seu poder de escolha e de vivenciar sua sexualidade garantidos.

Portanto, o legislador e o operador do direito deverão explorar os casos de acordo com suas peculiaridades, buscando verificar se a situação é de abuso, violência e exploração sexual sem, contudo, impedir o direito constitucional da liberdade de escolha onde ela for constatada como possível.

*Daniel Gerber é criminalista, especialista em Direito Penal Econômico e mestre em Ciências Criminais, sócio de Daniel Gerber Advogados Associados

*Ana Manuela Nepomuceno é criminalista do escritório Daniel Gerber Advogados Associados

Referências Bibliográficas:

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: Princípios do Direito Político. São Paulo: Editora Pilares, 2013. CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam. Juventude e Sexualidade. São Paulo: UNESCO, 2004. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.320.924/MG, Sexta Turma. Relator Ministro Rogério Schietti Cruz. 16 de agosto de 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.435.416/SC, Terceira Seção. Relator Ministro Gurgel de Faria. 22 de abril de 2015. MENDES, Mariana Porto. Estupro de Vulnerável Consentido: Diversas Visões Acerca da Absolvição Embasada no Consentimento da Vítima. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual e a fé pública. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. TAGLIAVINI, João Virgílio. Estupro de Vulnerável Consentido uma Absolvição Polêmica. 2012. Disponível em: http://www.editoramagister.com/doutrina_22971822. Acesso em: 24 de novembro de 2020.

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