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Você duvida?

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Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: WERTHER SANTANA/ESTADÃO Foto: Estadão

Em 22.10.1966, o filósofo Vilém Flusser publicou um artigo no Estadão cujo título era ?. Não é engano, não. O nome do artigo era um ponto de interrogação. É o símbolo da dúvida. E aquilo que motivou o autor há mais de meio século, continua a angustiar a lucidez restante.

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Uma das características de considerável parcela das novas gerações é a absoluta certeza que elas demonstram a respeito de quase tudo. Quantas vezes, ao indagar algo aos jovens, a primeira e impulsiva resposta é "Com certeza!". Entretanto, prevalece a dúvida. Quais as certezas de que podemos nos gabar?

Nos anos 50, Vilém Flusser já havia escrito o seu livro "A dúvida" e esse estado de espírito, para ele, era polivalente: "Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, instituir-se como 'ceticismo', isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento, mas em dose excessiva paralisa toda atividade mental. A dúvida como exercício intelectual proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto, de todo conhecimento sistemático - mas em estado destilado mata toda curiosidade e é o fim de todo conhecimento".

Sempre acreditei que a dúvida metódica é um hiato no trajeto que culmina em obtenção de certeza. Hiato breve, apenas para propiciar reflexão. Quando a dúvida persiste, converte-se em sistemática. Esta neutraliza, paralisa, inibe e acaba no ceticismo e, finalmente, no niilismo.

Para Kant, na visão de Flusser, o ceticismo é um lugar de descanso para a razão, embora não seja uma moradia. Só que o mundo empurra os seres humanos para essa postura irreversivelmente cética. Não é possível acreditar-se naquilo que já foi sólido alicerce para firmes convicções.

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Senão veja-se: o Estado, considerada a sociedade política suficientemente ampla para acolher todas as demais formas associativas particulares e também as miríades de vocações individuais, é uma experiência frustrante. O representante, em regra, esquece-se de que representa alguém e que tem de buscar o bem comum. Apodera-se do cargo, da função e procura seus interesses egoísticos.

A família sofreu tantas intempéries que é raro configurar o nicho de segurança afetiva suficiente para aliviar as agruras do convívio. A fragilidade dos laços familiares, a preponderância dos interesses pecuniários, o egoísmo a suplantar vínculos de sangue ou de parentesco civil dão mostra de uma outra instituição em perigo.

A escola não consegue formar gerações equilibradas, hábeis em aceitar contratempos, voltadas à edificação de uma sociedade harmônica. Menos ainda, chegar ao parâmetro de convívio justo, fraterno e solidário como o constituinte de 1988 prometeu no preâmbulo da Carta Cidadã.

O pacto fundante da República Federativa do Brasil se propôs a eliminar a miséria, reduzir as desigualdades, tutelar o meio ambiente, cujo equilíbrio é essencial para as futuras gerações. Alguém duvida de que tudo isso foi esquecido e que a vida é o reflexo de um campo de batalha, nem sempre incruento, em que se digladiam forças alimentadas pela mentira, pela dissimulação, pela farsa e pela crueldade?

Se já existiam certezas fragilizadas, elas se tornaram esvaziadas com o advento da peste. A pandemia desmentiu a sensação de segurança que os governos faziam questão de divulgar, como se estivessem a cumprir, a contento e com eficiência, as missões para as quais foram preordenados. As falhas e vulnerabilidades exibiram o cenário de abandono de políticas públicas de saúde, principalmente as encarregadas da prevenção. Como prevenir patologias se mais da metade da população não dispõe de água ou de esgotamento doméstico?

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Existem, é verdade, resíduos de fé. Naqueles que encontram na crença o lenitivo que a vida real recusa. Mas há muitos seres humanos desprovidos dessa dádiva. Tantos os que não têm, para seu conforto espiritual, o arsenal contábil que acumula créditos para a vida verdadeira, que começa com a morte. Como devolver a essa legião uma esperança em dias melhores?

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A dúvida a respeito de quase tudo é estímulo a que se agarre à tentativa de encontrar algumas certezas. Dentre elas, a de que o homem provido de razão tem de ser o condutor de seu próprio destino. Deletar os mentirosos, os hipócritas, os cegos que pretendem conduzir os caolhos e começar de novo uma coexistência baseada na verdade.

A pandemia tem o condão de evidenciar a insuficiência dos esquemas que até hoje nos mantiveram inermes e com os quais não se atingiu o estágio de cooperação que deve existir entre seres racionais.

Não se duvide de que, a despeito do período inglório, a vida pode ser bem melhor, se tivermos a coragem de expulsar os vendilhões do templo e restaurar as bases para relações respeitosas e verdadeiramente humanas. Você duvida de que isso seja possível?

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2019-2020

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