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Uso de componentes de reposição remanufaturados: desafios da sustentabilidade ao Código de Defesa do Consumidor

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Por Gustavo Terra Teixeira
Atualização:
Gustavo Terra Teixeira. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Discute-se aqui a possibilidade de uso - especialmente por assistências técnicas autorizadas de fabricante de produtos - de componentes de reposição remanufaturados no contexto do fornecimento de serviços que tenham por objeto a reparação de qualquer produto.

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Assim, falemos da possibilidade de fabricantes de produtos usarem componentes de reposição remanufaturados na prestação do  serviço de qualquer reparo, visando (i) adotar procedimento que melhor se amolda à defesa do meio ambiente e (ii) obter redução de custos para a empresa e para o consumidor, e tudo à luz de não se afrontar do artigo 21[1] do Código de Defesa do Consumidor que obsta o uso de peças usadas/recondicionadas em qualquer tipo de reparo, impondo o uso de peças originais adequadas e novas ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante.

Não poucas vezes, as lacunas das Leis podem e devem ser preenchidas com conhecimentos técnicos os quais extrapolam o âmbito o jurídico. É o que ocorre no caso, pois o artigo 21 do Código de Defesa do Consumidor deixa ao alvedrio da engenharia a resposta do que seria um componente de reposição que embora não novo, atenda as especificações técnicas do fabricante em padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

Cabe então neste momento discorrer sobre a diferenciação entre componentes de reposição remanufaturados e componentes de reposição recondicionados, considerando-se que os primeiros, atendidos os padrões adequados e especificações técnicas do fabricante, são os que se enquadrariam no texto da Lei como permitidos, além dos componentes novos:

Componente de Reposição Remanufaturado: Peça ou componente de produção original usado, caracterizado por ter sido submetido a processo industrial pelo próprio fabricante original deste ou em estabelecimento autorizado deste fabricante, para restabelecimento das funções e requisitos técnicos originais, e com uso de reciclagem, economia de energia e de menos poluentes, logo, uma medida de sustentabilidade ambiental e com melhor custo-benefício.

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Componente de Reposição Recondicionado: neste processo, os produtos são simplesmente consertados ou readequados. Muitas vezes nem chegam a ser totalmente desmontados. Em se tratando de peças, por vezes são apenas limpas, lixadas e repintadas. Muito embora os preços de componentes recondicionados sejam atrativos, estes põe em risco o correto funcionamento do produto final. Basicamente é a peça submetida a processo técnico ou industrialpara ter restabelecidas suas funções, sem que, com isso, a peça tenha a mesma qualidade, funcionalidade e via útil da peça original.

Assim, a diferença relevante reside no fato de que os remanufaturados são originais e submetidos procedimento industrial que objetiva reativar as condições funcionais de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, diferentemente dos recondicionados que são peças usadas sem a adoção de um procedimento técnico específico, o qual possa reativar os padrões funcionais, comprometendo o correto funcionamento do produto reparado.

 O debatido artigo 21 do Código de Defesa do Consumidor não impõe qualquer obrigação ao fabricante em submeter ao consumidor a aprovação para o uso de componentes técnicos de reposição remanufaturados, os quais sigam a especificação técnica do fabricante. A única ressalva ao uso de tais componentes reside no eventual óbice a ser apresentado de forma expressa pelo consumidor, todavia não indicando, sem margem de dúvidas, qualquer imposição no sentido de que o consumidor deva autorizar o uso.

Atrelado a não imposição de submissão da questão ao crivo do consumidor, podemos dizer, sem medo de errar, que a grande maioria dos consumidores não apenas pretende consumir de maneira sustentável, como vê a questão como um dever cívico, inclusive a grande maioria dos consumidores de uma faixa etária mais jovem vê a sustentabilidade como um fator relevante em suas decisões de consumo.

Ademais, o uso de peças remanufaturadas na prestação de serviços de reparo de produtos, é medida claramente de "economia circular", termo muito em voga atualmente, que, aplicado ao mercado de consumo, tem relação com um conceito restaurativo e regenerativo dos produtos, com um consequente aumento de ciclo de vida destes produtos, tudo atrelado a uma redução da dependência por materiaise fontes de energias não renováveis.

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Não obstante os claros benefícios no campo da sustentabilidade, também não é exagero então dizer que a interpretação gramatical do artigo 21 do Código de Defesa do Consumidor, por si só, é suficientemente inteligível para se chegar à conclusão de que o consumidor não necessita autorizar o uso de componentes de reposição remanufaturados que sigam corretamente as especificações técnicas do fabricante, sem a necessidade de maiores aprofundamentos no campo hermenêutico.

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 Além da informação precisa ao consumidor pela própria letra da Lei, este também é legalmente reconhecido como vulnerável tecnicamente, não sendo possível aos consumidores, na esmagadora maioria das vezes, a análise das especificações técnicas do fabricante. Aliás, este entendimento decorre do próprio protecionismo do consumidor, pois sendo peças novas ou recondicionadas, o ônus da prova em relação ao preenchimento dos padrões técnicos de qualidade recairia sobre a própria empresa.

O espírito do direito básico de informação não é o de proteção meramente teórica ao consumidor, mas sim prática e efetiva de modo que o consumidor possa exercer seu poder decisório. Não é, no entanto, o que ocorre com as informações estritamente técnicas, visto que, diante da vulnerabilidade técnica do consumidor, salvo raras exceções, este não estará apto a discernir e opinar sobre tais questões.

Desde que os componentes de reposição se enquadrem no "atendimento das especificações do fabricante", sendo menor o custo e ainda se amoldando à necessidade de sustentabilidade ambiental,a informação de que o componente trata-se de peça remanufaturada (além da letra da lei) não traria nenhum acréscimo vantajoso a este, e nenhum decréscimo que pudesse ensejar em óbice de fruição de seu direito básico de informação.

Aplica-se nesse caso, pois, para fins de resguardar os direitos básicos dos consumidores, medidas de inversão do ônus da prova a desfavor da empresa (a empresa deverá provar os padrões de qualidade) bem como a responsabilidade objetiva desta (ou seja, responderia por eventuais defeitos independentemente da comprovação de sua culpa), itens protetivos que se sobrepõem ao suposto direito de informação meramente teórico do caso.

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Desde que os componentes de reposição remanufaturados estejam de acordo com critérios de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, o uso de tais componentes se adequa a Política Nacional das Relações de Consumo cujos objetivos são delineados no artigo 4°[2] do Código de Defesa do Consumidor, já que a prática em debate atende à melhoria da qualidade de vida do consumidor, diante do respeito ao meio ambiente e ainda aos interesses econômicos deste, ante a um melhor custo benefício.

O uso de componentes de reposição remanufaturados que atendam as especificações técnicas do fabricante se enquadra como medida de sustentabilidade ambiental. Não há nesta prática o desrespeito a qualquer direito consumerista, mas antes medida que beneficia a coletividade em geral em que, obviamente, também estaã compreendidos os aludidos consumidores (ambos os aspectos, a proteção ao consumidor e a proteção do meio ambiente, são princípios constitucionais estampados no artigo 170 da Carta Magna).

Se fosse o caso, inclusive, diante do conflito das normas - consumeristas e ambientais - aplicar-se-ia o chamado Princípio da Proporcionalidade, socorrendo as empresas que façam uso de medidas ambientais em suposto detrimento de interesses individuais dos consumidores.

A finalidade do Princípio da Proporcionalidade é justamente equilibrar o conflito entre as normas constitucionais, visando, assim, equilibrar os interesses dos indivíduos envolvidos e como instrumento de controle de excessos em relação aos exercícios desses interesses.

O próprio Supremo Tribunal Federal[3] vem aplicando em suas decisões o mencionado Princípio da Proporcionalidade para compor conflitos entre normas constitucionais de mesmos patamares, especialmente para garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, refletindo esta posição em linhas com o caput do artigo 225[4] da Constituição Federal,  claro no sentido de que é dever de todos, incluindo as empresas, preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, norma essa que se sobrepõe aos interesses individuais dos consumidores.

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Neste contexto, se a conduta da empresa é a de proteção ao meio ambiente e ainda com melhor custo-benefício, automaticamente o próprio consumidor contido nessa universalidade se beneficia, pois o meio ambiente equilibrado é essencial à sadia qualidade de sua vida.

Logo, conclui-se que o uso de componentes de reposição remanufaturados é viável e permitido na prestação de serviços de reparo de produtos; diante da interpretação legal acima discutida, desde que as peças estejam de acordo com padrões de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho; com melhor custo-benefício aos próprios consumidores e inclusive considerando se tratar de uma medida sustentável, de defesa do meio ambiente, se sobrepondo aos interesses individuais dos consumidores.

*Gustavo Terra Teixeira é advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)

[1]  "Art. 21. No fornecimento de serviços que tenham por objetivo a reparação de qualquer produto considerar-se-á implícita a obrigação do fornecedor de empregar componentes de reposição originais adequados e novos, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante, salvo, quanto a estes últimos, autorização em contrário do consumidor."

[2] "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

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I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

  1. a) por iniciativa direta;
  2. b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
  3. c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
  4. d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

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V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;"

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.

[3] - MC na Ação Direita de Inconstitucionalidade 3540, Relator Celso de Mello

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[4] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

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