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Urna eletrônica e voto impresso: entre a desconfiança e a legitimidade

Por Thiago Buschinelli Sorrentino
Atualização:
Thiago Buschinelli Sorrentino. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O Judiciário não deve intervir nas decisões políticas com o objetivo de corrigir erros, se tais erros não consistirem em algum tipo de invalidade, como ilegalidade ou inconstitucionalidade. Essa proibição decorre da separação de Poderes e do princípio democrático, que não outorgam legitimidade para que o Judiciário tome decisões políticas.

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Assim, em princípio, por mais desastrosa ou equivocada que seja a eventual escolha pelo regresso ao voto impresso, se ela for feita nos termos das regras democráticas, o Judiciário deveria respeitá-la.

Para contornar a restrição imposta pela separação de Poderes e pelo princípio democrático, há um mecanismo jurídico bastante conhecido pela experiência norte-americana e que recentemente vem ganhando espaço na prática do Supremo Tribunal Federal. Trata-se do procedimentalismo, cujo expoente é o célebre julgamento Carolene Products e a respectiva nota de rodapé mais famosa do Direito Constitucional, a Nota de Rodapé 4. Segundo se expôs nessa nota de rodapé, o Judiciário não deve se imiscuir nas decisões políticas, a não ser que tais decisões sejam prejudiciais a minorias insulares, isto é, grupos sociais mal representados politicamente.

Num hipotético julgamento pela inconstitucionalidade do acoplamento do voto impresso à urna eletrônica, o Judiciário teria que demonstrar que o eleitor estava mal representado politicamente e que o Congresso agiu capturado por preferências pessoais e interesses de grupos oligárquicos ou hegemônicos.

Uma outra forma de declarar a inconstitucionalidade dessa forma de contabilização do sufrágio seria sustentar e convencer que ela prejudica sensivelmente o próprio exercício do direito ao voto, colocando-o em risco inequívoco, grave e imediato. Aqui também não bastaria ao Tribunal afirmar que a urna eletrônica isolada é mais eficiente que outro método adjunto ao voto impresso. E há duas formas de se fazer isso. A primeira é pela autoridade do argumento: o Tribunal precisa demonstrar e provar para além de qualquer dúvida razoável que o sistema puramente eletrônico é seguro e permite a posterior checagem de integridade. A segunda é pelo argumento de autoridade: fiar-se apenas na palavra da própria Corte.

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O problema é que, provavelmente, a maioria das pessoas, a quem as decisões judiciais são direcionadas, não tem o treinamento técnico nem a intenção de especializarem-se para compreender profundamente a prova que o Tribunal tem o dever de produzir. Por outro lado, se houver um défice de confiança no Judiciário, especialmente no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral, o resultado será recebido com desconfiança. Aliás, em relação à ação estatal, a desconfiança é o padrão e os agentes públicos já começam em desvantagem, dado que o poder corrompe, como falaram Acton e Montesquieu, e os candidatos a santos devem passar por um escrutínio mais rigoroso, como sustentou Orwell.

De fato, a Corte não deveria fiar-se apenas em seu capital simbólico, nem na circunstância de não haver comprovação por terceiros de que a urna eletrônica é segura, pois, quanto a essa última, uma correlação nunca supre a necessidade de uma implicação. Quem deve fazer a prova de segurança é o próprio Judiciário.

Ademais, de nada adiantará qualquer decisão sobre a matéria, se houver défice de confiança nas Cortes. Pelo contrário: a decisão, qualquer que ela seja, contribuirá para reduzir ainda mais a confiança na lisura do próprio processo eleitoral. Apesar de o sufrágio universal não ser o único instrumento para garantir os princípios democrático e republicano, ele é essencial e imprescindível.

Em conclusão, para que não fique caracterizada a usurpação política num eventual julgamento do regresso ao voto impresso, compete ao Judiciário reforçar a confiança nas instituições (especialmente STF e TSE) e tomar a iniciativa para demonstrar para além de qualquer dúvida razoável a segurança das urnas eletrônicas, sem fiar-se somente na aparente ausência de fraudes bem-sucedidas; sem prejuízo, compete também ao Judiciário demonstrar como o retorno ao voto impresso torna o sistema suscetível a fraudes de modo a arriscar a própria higidez do sufrágio.

*Thiago Buschinelli Sorrentino é professor de Direito do Estado do Ibmec Brasília. Doutorando em Direito pela UAL (Lisboa). Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário Material pela Cogeae/PUC-SP. Instrutor interno do Supremo Tribunal Federal.  Foi assessor de ministros do STF por uma década

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