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Uma preocupante privatização

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Rogério Tadeu Romano. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  Foto: Estadão

Um decreto publicado no dia 27 de outubro do corrente ano permite que o Ministério da Economia realize estudos para a inclusão das Unidades Básicas de Saúde (UBS) dentro do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI). O PPI é o programa do governo que trata de privatizações, em projetos que incluem desde ferrovias até empresas públicas.

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O texto do decreto 10.530, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes, afirma que a "política de fomento ao setor de atenção primária à saúde" está "qualificada" para participar do PPI. Segundo o decreto, os estudos sobre as UBS devem avaliar "alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

As Unidades Básicas de Saúde (UBS) são a porta de entrada preferencial do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo desses postos é atender até 80% dos problemas de saúde da população, sem que haja a necessidade de encaminhamento para outros serviços, como emergências e hospitais.

A privatização desse sistema poderá ser um desastre.

O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierárquica de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no polo ativo qualquer pessoa e comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais(DF) e municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização com direção única em cada esfera de governo de atendimento integral, com prioridade para as atividades preventiva e da participação da comunidade, o que confirma o seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social coletivo do outro. É por meio dele que o Poder Público desenvolve e controla uma série de atividades de controle de substâncias de interesse para a saúde e outras destinadas ao aperfeiçoamento de prestações sanitárias.

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Quase 80% dos idosos dependem exclusivamente do SUS, uma preocupação a mais para eles no momento em que a pandemia ameaça começar a exaurir os leitos e recursos do Sistema Único de Saúde.

Daí a incomensurável importância de um sistema público de saúde no Brasil, extremamente avançado em relação a nações hegemônicas como os Estados Unidos.

Nossa Constituição define que a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas essa também, como tantas outras obrigações do Estado brasileiro diante dos seus cidadãos, tem sido historicamente difícil de ser atendida. No caso da saúde, há um grande caminho a percorrer, seja sob o aspecto do equacionamento da capacidade do Estado de financiar sua obrigação constitucional, seja pela busca de soluções alternativas mediante aquilo que se convencionou chamar de saúde suplementar.

Foi com a Constituição de 1988 que se institui o Sistema Único de Saúde (SUS), no qual a universalidade, a equidade e a integralidade da assistência à saúde de todos os cidadãos são preceitos básicos. Configurou-se aí o lema "Saúde, direito de todos e dever do Estado". Embora o conceito do SUS tenha sido uma enorme evolução em relação à situação anterior, já que abriu a perspectiva de atendimento a parcelas da população inteiramente desassistidas, a realidade tem sido muito mais desafiadora do que a pretensão dos legisladores e a capacidade dos executores públicos.

Ora, se a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, parece incontornável a conclusão de que a intervenção do Poder Público, no particular, deverá ter finalidades outras, quais sejam: preservar a liquidez e a solvência das operadoras; fiscalizar o cumprimento das obrigações por elas assumidas contratualmente; assegurar a transparência e clareza das informações ao consumidor, escoimando dos contrato as cláusulas abusivas.

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Portanto, a máquina de saúde privada tem um limite: a sua liquidez e solvência.

A UBS em tese não é lucrativa para gerar investimento por parte da empresa.

A parceria público-privada (PPP) é um instrumento que remunera um parceiro da iniciativa privada -- uma empresa ou um consórcio de empresas -- para a realização de um serviço público. O poder público conta com o potencial de investimento do parceiro para eventuais obras e manutenção de um serviço. Em contrapartida, o parceiro ganha a segurança de um contrato milionário a longo prazo com retorno garantido.

Como assim falar em PPP no âmbito de uma UBS?

A solução que o atual governo quer dar no caso do Brasil faz lembrar o exemplo chileno.

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Lembro o que disse Maria Eliana Labra(Política de saúde no Chile e no Brasil; Contribuições para uma comparação):

"Já no início da ditadura pinochetista, um grupo de médicos direitistas, apoiado por economistas neoliberais, apresentou ao governo um plano contendo radicais mudanças no setor saúde, num momento em que o SNS cobria 100% da população em matéria de saúde pública e prestava atenção médica e hospitalar a 90% da população, ficando a diferença por conta das forças armadas, que mantiveram seus sistemas próprios (até hoje) e do estrato de rendas mais altas, atendido pela medicina liberal privada. Tal plano foi efetivado em curto espaço de tempo, entre 1978-1980, quando o núcleo hegemônico integrado por Pinochet e economistas neoliberais estava no auge. Essa aliança permitiu empreender com velocidade as chamadas "modernizações" que mudaram a face e a cultura do país: inserção da economia nos mercados mundiais, privatização de empresas públicas e redução do pessoal da Administração Pública em um terço. Ao mesmo tempo, foi efetivada a transformação mais profunda de todas, qual seja, a privatização do sistema previdenciário mediante a transferência dos fundos acumulados pelo Seguro Social e caixas de empregados a Administradoras de Fundos e Pensões lucrativas, baseadas apenas no regime de capitalização individual visto que os aportes do Estado e das empresas foram eliminados.

Dissolvido o vínculo histórico entre Previdência e Saúde, foi possível completar a "refundação" do setor saúde, que consistiu nas seguintes mudanças principais: (1) extinção do SNS e criação do Sistema Nacional de Serviços de Saúde-SNSS, regionalizado; (2) separação entre funções executivas (SNSS), financeiras (Fundo Nacional de Saúde) e político normativas (Ministério da Saúde); (3) transferência dos centros de Atenção Primária a corporações municipais de direito privado, junto com o pessoal, que deixou de pertencer à Administração Pública; (4) eliminação da distinção entre operários e empregados e acesso geral ao regime de livre escolha no SNSS; (5) contribuição inicial de 2% e, desde 1986, de 7% da renda do assalariado para a saúde, ficando isentos os empregadores, a par que o Estado assume aportar recursos até os usuários terem capacidade de arcar com todos os custos; (6) criam-se as Instituciones de Salud Previsional, ou Isapre, intermediadoras financeiras de planos de saúde ? note-se que a adesão do assalariado a uma Isapre o isenta de contribuir para o sistema estatal; (7) estratificação do acesso aos serviços estatais segundo faixa de renda do usuário.

Como se pode coligir, com a isenção de contribuição para o Fundo Nacional de Saúde para as pessoas que optam por uma Isapre, rompeu-se a solidariedade no financiamento da saúde, a par que o SNSS deixou de receber considerável volume de recursos. O forte subsídio indireto dado dessa e de outras formas ao setor privado e mais a estratificação do acesso desenhou dois tipos de medicina: uma para ricos e outra para pobres. Esses estratos, por sua vez, passaram a receber uma atenção de péssima qualidade, visto o desmantelamento dos estabelecimentos públicos e a desmoralização do pessoal devido à repressão e aos baixos salários.

Paralelamente, tomaram-se medidas destinadas a quebrar o poder corporativo das organizações sociais mediante a decretação da livre associação. Essa decisão foi mais um triunfo dos neoliberais, que assim enterraram de vez o sonho da direita católica de implantar no país um Estado orgânico que, por sinal, nunca vingou no Chile por causa da força dos partidos políticos. Assim, foi abolido o status público das organizações, sendo obrigadas a transformar-se em "associações gremiais" de direito privado e afiliação voluntária. Para o Colégio Médico os efeitos foram e ainda são dramáticos, pois perdeu o monopólio da representação e o controle ético, que passou à Justiça, bem como a faculdade de fixar e administrar os honorários da livre escolha, agora a cargo do Fundo Nacional de Saúde.

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Entre outros resultados do redesenho neoliberal autoritário do setor saúde destacam os efeitos desastrosos da regionalização e da municipalização em termos de descoordenação e fragmentação do sistema, a frustração do pessoal da Atenção Primária, que teve seus direitos estatutários cancelados e a mencionada deterioração dos serviços estatais e das condições de trabalho. Por outro lado, as Isapre, impulsionadas desde o Estado, ganharam aceitação entre a população e os médicos, mas sua expansão viu-se limitada pelo baixo poder aquisitivo dos chilenos, de modo que hoje cobrem menos de 24% da população e se concentram em consultas médicas e maternidades. Quer dizer, a intenção de desvencilhar o Estado do dever de prestar cuidados médicos aos cidadãos viu-se frustrada posto que o SNSS, além de continuar a cargo da saúde pública nacional, ainda beneficia 70% da população (Ministerio de Salud, 2001a). Por outra parte, se o atendimento era gratuito nos tempos do SNS, a ditadura conseguiu repassar quase 50% do financiamento para os usuários.

Em linhas gerais, esse redesenho do sistema de saúde se mantém até hoje no Chile, ainda que com o retorno à democracia, em março de 1990, diversas medidas tivessem sido tomadas para sanear os problemas acima apontados, sobretudo porque, no conjunto, induziam altos graus de ingovernabilidade e iniqüidade no setor. Os governos da "Concertação" têm se empenhado, por um lado, em dotar o SNSS de maior racionalidade e coordenação e em regular as Isapre e, por outro, têm aumentado o aporte fiscal para a saúde para diminuir o ônus dos usuários, acompanhando assim uma série de políticas sociais destinadas a reduzir a pobreza herdada da ditadura a patamares próximos de 22% da população, embora mantendo abissal concentração de renda induzida pelos ajustes neoliberais. Com efeito, em 1994, 40% dos lares mais pobres detinham apenas 15,2% da renda, enquanto os 40% mais ricos ficavam com 39,4% (Schatan, 1998).

A esse respeito, cabe ressaltar que, embora os indicadores sociais aproximem o Chile e o Brasil, a situação de saúde dos chilenos apresenta-se bem melhor que a dos brasileiros, em particular aqueles relacionados com os cuidados preventivos e a atenção ao parto. A título de ilustração, insere-se no final da exposição uma tabela mostrando indicadores que permitem aquilatar tais assertivas.

Entre as projeções para o caso do Chile, é improvável a adoção, no médio prazo, de políticas que objetivem a reestruturação do sistema de saúde com vistas a superar o maior problema reconhecido pelas autoridades, qual seja, a iniqüidade no acesso aos serviços médicos do país. De fato, o aprofundamento do viés de classe cristalizou, como se disse, uma medicina para ricos e outra para pobres. Uma nova reforma significaria introduzir transformações radicais no segmento privado, que se coloca como complementar ao setor público, mas não se submete às regulamentações estatais nem aceita perder a posição de novo ator setorial poderoso e bem-organizado, com ingerência privilegiada direta nos processos decisórios. Por outro lado, se em outros tempos o Colégio Médico teve grande influência na modelagem das políticas, hoje encontra-se enfraquecido não só pela perda de suas prerrogativas, mas também pela escassa coesão de seus membros, que agora têm diversos vínculos empregatícios por causa da fragmentação territorial dos serviços públicos e a expansão do mercado de trabalho na esfera privada. Por esses e outros motivos, e tal como sucedera nos anos da Unidade Popular (1970-1973), dificilmente a categoria estaria disposta a apoiar propostas que reduzam as conquistas econômicas alcançadas com a privatização.

Por último, nos anos 60, e no governo Allende em particular, intensificaram-se mecanismos de controle social mediante conselhos locais de saúde que se espalharam pelo país e que a ditadura os anulou. Com o retorno à democracia foram revigorados conselhos comunais e regionais que, no entanto, carecem de legitimidade para incidir na formulação das políticas e fiscalizar os programas em curso.

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Finalizando, a polarização político-ideológica do país, demonstrada nas eleições presidenciais de dezembro de 1999, quando o candidato da "Concertação" ganhou por apenas 2,6% dos votos de seu rival ultradireitista, augura um futuro incerto ou mesmo bloqueado quanto a novas reformas que atendam a objetivos de maior igualdade social na atenção à saúde. Isto porque a polarização se traduz em duas propostas radicalmente opostas para o setor: uma, da direita, de aprofundar a privatização aplicando a lógica lucrativa das Isapre no setor estatal; outra, progressista, que propõe retornar ao ideário de medicina social que encarnara o ex-SNS, com isso implicando atendimento estatal fundamentado em princípios de igualdade, universalidade, integralidade e participação. "

Esse sistema chileno, um paradigma certamente para o atual ministro da Economia, representa a implosão de um sistema público de saúde.

Ainda Antônio Pires Barbosa e Ana Maria Malik(Desafios nas parcerias público-privadas no Brasil) disseram:

"No Chile, a implantação de hospitais construídos e operados pela iniciativa privada começou a ser estruturada durante o governo Ricardo Lagos em consequência do sucesso do modelo na construção e manutenção de estradas (Bachelet, 2014). Foram desenvolvidos os projetos dos hospitais de El Salvador de Santiago, Antofogasta e Félix Bulnes e estabelecidos parâmetros de avaliação que implicaram o reposicionamento dos governos Bachelet e Piñera em virtude de questionamentos da Controladoria-Geral da República e da inexperiência com a nova modalidade de concessão no país. Entre os argumentos relevantes citados pela autora que fundamentariam a proposição de concessões de serviços públicos sociais e de saúde estava a relativa capacidade de reduzir rapidamente a "brecha sanitária", a não geração de dívida fiscal imediata, a introdução de suposta melhoria gerencial das estruturas, a liberação de parte de capacidade de investimento do Estado em outras políticas sociais, a agilidade nos procedimentos de compras do setor privado e a manutenção do princípio de subsidiariedade do Estado. Davies (2010) e Pollock e colaboradores (2011) apud Bachellet (2014) detalham em sua revisão as potenciais dificuldades que têm acometido os sistemas mais antigos e mais experientes em relação aos projetos de PFI, o inglês e o canadense, e se referem à imprevisibilidade sobre a evolução de desencaixes financeiros de longo prazo, à garantia de equidade do acesso, à insuficiente capacidade de cobertura de rede assistencial dos projetos, à não consecução de padrões de qualidade de assistência compatíveis com as necessidades da população e o comprometimento fiscal de gerações futuras. Bachelet (2014) ainda salienta o esforço pela manutenção de condições que permitam a comparação entre a assistência provida diretamente pelo Estado ou pela iniciativa privada como elemento-chave da continuidade dos programas."

Ora, o projeto de privatização das UBS representa o princípio da implosão do SUS no Brasil

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O decreto Nº 10.530 representa uma grande ameaça ao SUS da maneira que conhecemos: uma possível administração privada do Sistema Único de Saúde seria um passo grande para maior privatização do sistema. O motivo da formação do SUS foi a criação de uma saúde que pensa no sujeito independentemente do lucro; em caso de privatização ou concessão, a chance de uma remodulação que impeça serviços de alto custo e baixo retorno para o sistema é alta.

Ora, um sistema privado iria se preocupar em criar políticas públicas de saúde ou... iria pensar no lucro?

Parece-nos que não.

Como consequência ter-se-á grave crise no acesso à saúde, com esse projeto de privatização, com uma sociedade cada vez mais empobrecida que irá piorar seu acesso a algo que é dever do Estado e seu direito.

O decreto foi revogado, após uma ampla manifestação contra a sua edição.

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Bolsonaro disse que deve reeditar na semana que vem o decreto, revogado no dia 28 de outubro, que colocava UBS (unidades básicas de saúde) no escopo de interesse do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos).

"Revoguei o decreto, fiz uma nota explicando o que era esse decreto, dizendo que nos próximos dias poderia reeditar o decreto, o que deve acontecer na semana que vem", disse o presidente.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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