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Uma análise crítica dos projetos tendentes a instituir o imposto sobre grandes fortunas

Por Elisabeth Lewandowski Libertuci e Patricia Martinuzzo
Atualização:
Elisabeth Lewandowski Libertuci e Patricia Martinuzzo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Desde a década de 1980, há mais de 50 Projetos de Lei Complementar (PLP) para a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Só no período de nove meses entre janeiro e setembro de 2020, foram propostos pelo menos 18 PLP, os quais apresentam uma série de divergências, entraves práticos e falhas técnicas. A proliferação de textos produzidos em espaço de tempo tão curto nos obriga a analisar seu conteúdo e os consequentes efeitos. É disso que passaremos a tratar a seguir, com vistas a provocar atenta reflexão a respeito do tema tão em voga nos dias atuais.

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A primeira divergência entre os PLP é sobre o patrimônio alcançado. O PLP n. 95/20 propõe alcançar patrimônios superiores a R$ 55 milhões, montante justificado com base no relatório Grandes Números do Imposto sobre a Rendas das Pessoas Físicas (IRPF), segundo o qual em 2017 havia 25.177 pessoas com patrimônio aproximado de R$ 55 milhões. Todavia, os PLP n. 193/20, n. 201/20 e n. 63/20 propõem alcançar patrimônios superiores a R$ 5 milhões, sem justificarem como chegaram a esse valor. Parece-nos relevante que qualquer PLP que trate sobre grandes fortunas identifique o critério utilizado para definir fortuna, notadamente seu fato gerador e o que deve ser entendido como não sendo fortuna. Essa transparência, além de mais adequada ao jogo democrático, permitiria futuras análises e sugestões de melhoria às propostas. Além disso, se a métrica para a definição do valor sujeito ao IGF foi o relatório Grandes Números do IRPF, surge o dever de justificar o alcance do IGF sobre outros contribuintes que não sejam pessoas físicas residentes, porque vários PLP pretendem alcançar também não residentes e inclusive pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil.

A segunda divergência entre os PLP é sobre quem suportará a maior alíquota do IGF. A depender do PLP, as alíquotas máximas de IGF se aplicam a patrimônios de R$ 10 milhões até R$ 1 bilhão. Por exemplo, o PLP n. 190/20 propõe seis alíquotas progressivas de 0% até 5,5%, sendo essa última alíquota aplicável a patrimônios superiores a R$ 1 bilhão. Ao seu turno, o PLP n. 63/20 propõe três alíquotas progressivas de 0% até 0,5%, sendo essa última alíquota aplicável a patrimônios superiores a R$ 10 milhões. Não há nos PLP qualquer justificativa para que as alíquotas máximas incidam sobre bases de cálculo diferentes em 100 vezes uma da outra, o que sugere certa arbitrariedade.

A terceira divergência entre os PLP é a graduação das alíquotas. O IGF não precisa ser informado pelo critério da progressividade (alíquotas maiores sobre acréscimos marginais na base de cálculo), mas, sempre que possível, deve ter caráter pessoal e ser graduado segundo a capacidade econômica do contribuinte. Por isso, é compreensível que todos os PLP proponham um IGF progressivo. A rigor, para que um imposto seja progressivo, basta uma faixa de isenção e uma alíquota. Por isso, a progressividade é cumprida pelos PLP n. 215/20 (2,5% sobre patrimônio superior a R$ 50 milhões), n. 123/20 (2% sobre patrimônio superior a R$ 50 milhões), n. 95/20 (1% sobre patrimônio superior a R$ 55 milhões), n. 213/20 (2% sobre patrimônio superior a R$ 20 milhões) e n. 38/20 (0,5% sobre patrimônio superior a R$ 52 milhões). Contudo, salta aos olhos que outros PLP proponham mais faixas de progressividade do IGF. A título de exemplo, os PLP n. 190/20 e n. 193/20 previram seis faixas. Novamente, o silêncio em justificar a escolha entre duas ou seis faixas é indício de aleatoriedade na escolha das alíquotas. E pouco adianta prever várias alíquotas e admitir a corrosão da base de cálculo por deduções e exclusões, pois esse expediente apenas gera mais complexidade de aderência e de fiscalização.

Alguém poderia tentar relativizar essas divergências entre os PLP, sob o argumento de que cada PLP deve ser individualmente analisado em sua coerência interna. Essa ponderação nos parece válida, porém, ainda que analisemos cada PLP separadamente dos demais, verificamos entraves práticos e falhas técnicas dignos de nota.

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O primeiro entrave prático é a admissão de exclusões e deduções. Quase todos os PLP admitem que, na apuração da base de cálculo, sejam excluídas determinados valores, tais como imóvel residencial, instrumentos de trabalho, direitos de propriedade intelectual e industrial, bens de pequeno valor, além de certas dívidas e ônus. A maioria dos PLP admite que, do IGF, sejam deduzidos outros tributos efetivamente pagos sobre o patrimônio, tais como o Imposto Territorial Rural (ITR), o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU) e o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Alguns PLP admitem a dedução de 80% das doações realizadas a entidades beneficentes de assistência sócia, saúde e educação. Um PLP admite que o IGF apurado no Brasil seja reduzido por tributo semelhante ao IGF pago no exterior. Ao prever essas exclusões e deduções, o legislador pode ter tido a boa intenção de graduar o IGF conforme a capacidade de cada contribuinte. Contudo, na prática, o que se depreende da experiência do IRPF é que deduções e exclusões geralmente beneficiam justamente os contribuintes com mais capacidade para contribuir. Ainda que sejam previstos limites para deduções e exclusões, é provável haver um incremento da complexidade na apuração do IGF, dificultando a fiscalização e facilitando a sonegação, em prejuízo dos contribuintes que seguem à risca a lei. E, ainda que seja pequeno o universo de contribuintes e seja designado um grupo de pessoas para a fiscalização do IGF, vemos a dificuldade adicional de se permitir - sem meios de conferir - as exclusões e deduções por pessoas físicas e pessoas jurídicas residentes e domiciliadas no exterior.

O segundo entrave prático diz respeito à avaliação do patrimônio, o que nos parece imprescindível para que a grande fortuna (não a pequena fortuna) possa ser atingida por tributação. Alguns PLP preveem critérios distintos conforme o bem, tais como: imóveis no Brasil pela base de cálculo de ITR e IPTU; imóveis no exterior pelo custo de aquisição; aplicações financeiras pelo custo de aquisição atualizado ou pelo valor de mercado; participações em empresas abertas pelo valor de mercado; e participações em empresas fechadas pelo custo de aquisição deduzido de provisões para perdas prováveis. Outros PLP propõem o valor de mercado para todos os bens, indistintamente. Ainda outros PLP propõem que joias, metais preciosos, obras de arte e outros bens móveis sejam avaliados periodicamente, inclusive imóveis que tenham sido adquiridos há mais de cinco anos. Entendemos aqui residir o principal entrave para a instituição do IGF. Como afastar a subjetividade inerente à avaliação de um bem? Se o IRPF contempla valores vinculados ao custo de aquisição, parece óbvio não ser esse o critério apropriado para servir de base de cálculo para o IGF. Na prática, ninguém irá se insurgir contra o custo de aquisição, mas, ao mesmo tempo, em termos efetivamente econômicos, a fortuna de fato não virá a ser alcançada pela tributação via IGF. O instituidor do imposto, certamente, teria que evoluir para uma avaliação de mercado e, com isso, importar ao IGF as mazelas próprias deste tipo de avaliação. Isso para não falar de peculiaridades que nem mesmo a aferição a mercado resolve, como é o caso de bens que adquirem valor de mercado dada sua especificidade, muitas vezes sem existir comparativo para fins de avaliação. É o que pode vir a acontecer quando se tiver que avaliar "a última joia da Coroa". Isso tudo para não se falar do quanto seria excessivamente oneroso impor aos contribuintes o custo adicional de pagar por avaliações periódicas de joias e obras de arte, por exemplo.

Para além das divergências e entraves práticos, há falhas técnicas. Os PLP n. 213/20, n. 38/20 e n. 50/20 não deveriam delegar para o Poder Executivo a definição da base de cálculo do IGF, pois essa competência foi constitucionalmente atribuída à lei complementar, em caráter indelegável, já que não se confunde com a atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária.

Ainda que essa delegação de competência fosse possível, os PLP n. 193/20, n. 201/20, n. .215/20 e outros não poderiam prever uma destinação específica para a arrecadação do IGF, pois o caráter distintivo do imposto é o custeio de despesas gerais, nisso diferindo das contribuições e taxas, cuja arrecadação é vinculada a uma destinação específica.

Para vincular a arrecadação a uma destinação específica, o PLP n. 4.194/20 sugere a instituição de uma Contribuição Social sobre Grandes Fortunas. Porém, não é pacífica a possibilidade de instituição dessa contribuição social, se considerarmos que o patrimônio não está no rol das materialidades constitucionalmente previstas para contribuições sociais, e a União só pode exercer sua competência residual para prever outras fontes de custeio da seguridade social por meio da instituição de impostos, que como visto são tributo distinto das contribuições.

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Conclusivamente, então, embora reconheçamos a extrema desigualdade social brasileira e o risco de agravamento dessa condição em razão da COVID-19, entendemos que os PLP, tal como apresentados, correm o risco de concretizar as desvantagens comumente associadas à instituição do IGF, tais como a baixa arrecadação, o alto custo administrativo, a bitributação, o desestímulo à poupança interna e o incentivo à fuga de capitais.

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Outras alternativas, que não o IGF, poderiam vir a ser analisadas para esse mesmo objetivo, equivale dizer, tributar o "super-rico" como mecanismo para o combate às desigualdades sociais. O tema é para lá de instigante e tem mobilizado autoridades de relevo, além de provocado interessantes debates em nível internacional. Sobre ele certamente faremos inúmeras reflexões.

*Elisabeth Lewandowski Libertuci, advogada em São Paulo. Graduada pela PUC/SP em 1985 e pós-graduanda pela mesma instituição. Palestrante em assuntos tributários no Brasil e no exterior. Autora e coautora de livros e artigos da área tributária. Colunista de vários jornais. Professora de pós-graduação lato sensu. Atua em Consultoria e Contencioso Tributário há mais de 20 anos. Sócia sênior do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados

*Patricia Martinuzzo, advogada em São Paulo. Graduada pela Faculdade de Direito da USP em 2014 e mestranda pela mesma instituição. Associada ao escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados

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