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Um ministro das Relações Exteriores na contramão da Constituição

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Rogério Tadeu Romano. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  Foto: Estadão

Segundo a BBC News, quatro meses depois de fazer críticas públicas contra o desmatamento no Brasil, o presidente Joe Biden e membros do alto escalão do novo governo dos EUA receberam nesta semana um longo dossiê que pede o congelamento de acordos, negociações e alianças políticas com o Brasil enquanto Jair Bolsonaro estiver na Presidência.

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O documento de 31 páginas, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, condena a aproximação entre os dois países nos últimos dois anos e aponta que a aliança entre Donald Trump e seu par brasileiro teria colocado em xeque o papel de "Washington como um parceiro confiável na luta pela proteção e expansão da democracia".

"A relação especialmente próxima entre os dois presidentes foi um fator central na legitimação de Bolsonaro e suas tendências autoritárias", diz o texto, que recomenda que Biden restrinja importações de madeira, soja e carne do Brasil, "a menos que se possa confirmar que as importações não estão vinculadas ao desmatamento ou abusos dos direitos humanos", por meio de ordem executiva ou via Congresso.

Artigo assinado para a edição do Globo, em 8 de maio de 2020, por oito ocupantes de altos cargos na esfera das relações internacionais ao longo da Nova República analisa o papel contraproducente do Itamaraty para ajudar o Brasil na pandemia, bem como a contradição da atual diplomacia com os princípios fixados na Constituição do país.

O quadro acima traçado é grave.

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II - OS PRINCÍPIOS QUE REGEM AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS DO BRASIL

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Nova República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Artigo 4º da Constituição de 1988.

Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil "rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político".

"Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações."

A independência nacional não decorre do mero existir como Estado, mas tem como fundamento a manutenção com o estrangeiro de relações diplomáticas, econômicas, militares, culturais etc, que garantam uma margem de autonomia suficientemente ampla, dentro do qual a independência nacional é exercida.

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Paul Reuter, no que se refere ao respeito aos direitos humanos, fixa muito bem quais são as condições necessárias para que se possa reconhecer aos particulares a condição de sujeitos de direito internacional:

a) Ser titular de direitos e obrigações diretamente estabelecidos pelo direito internacional;

b) Ser titular de direitos e obrigações sancionados diretamente pelo direito internacional.

O respeito à soberania, enquanto atributo de todos os Estados, implica a existência de uma estrita igualdade entres eles, como já acentuou a Carta das Nações Unidas, artigo 2º, parágrafo primeiro.

Respeita-se a não intervenção.

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Na palavra de Fauchille, intervenção é o ato de um Estado que impõe ou pretende impor sua vontade na vida interna do outro.

Em 1907, Ruy Barbosa, na Conferência de Haia, declarou que o Brasil reconhecia como essencial a norma que não distingue tamanhos nem riquezas no campo jurídico-político.

A Constituição de 1988 defende a solução pacífica dos conflitos internacionais.

A Constituição repudia o terrorismo, uma preocupação crescente da humanidade.

A igualdade de raças integra o rol dos direitos individuais.

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Da mesma sorte, a Constituição determina a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e defende a concessão do asilo político. Asilo é a proteção oferecida pelo Estado a um estrangeiro que esteja a sofrer perseguição política no país em que se encontra.

III - MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Sabe-se que, modernamente, dada a variedade de atribuições que lhe incumbem, o Chefe de Estado não tem mais condições de atender pessoalmente à direção de todos os serviços do país no exterior, como ensinou Hildebrando Accioly (Tratado de direito internacional público, volume I, pág. 443).

O ministro das relações exteriores é o responsável maior pelas funções administrativas da política de um Estado. Sua primeira grande missão, regulada pelo direito interno de seu país, é dirigir os negócios do seu Estado nas relações deste com as demais potências estrangeiras, norteando a política exterior que melhor convier aos interesses nacionais.

As atribuições do ministro das relações exteriores são de natureza interna e externa, mas é certo que as suas principais tarefas dizem respeito ao âmbito dos problemas exteriores do seu Estado, como a abertura e condução das negociações com outros Estados ou organismos internacionais; a elaboração de instruções aos seus agentes diplomáticos no exterior; a fiscalização dos diversos tratados firmados; expedição de correspondência diplomática; a proteção dos interesses políticos, econômicos e comerciais do Estados e de seus cidadãos no exterior etc. A sua participação considerada mais importante consiste na participação em todos os atos relativos à conclusão de tratados internacionais, sendo importante frisar que, nos termos do artigo 7º, § 2º, alínea a, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, tais ministros estão dispensados da apresentação da carta de plenos poderes, instrumento por meio do qual o governo normalmente dá ao agente em causa procuração geral para os atos próprios de sua competência.

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IV - A NEFASTA ATUAÇÃO DO ATUAL MINISTRO

Destaco ainda o que foi publicado pelo jornal O Globo, diante dos comentários feitos pelos diversos ex-ministros das relações exteriores com relação a conduta do atual ministro.

"Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.

Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genébra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero.

Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.

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Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global. A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidirmos por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.

Na Europa Ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios como França e Alemanha. A antidiplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos médico-hospitalares. O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e à insensibilidade às vidas humanas demonstrados pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de escárnio e repulsa internacional. Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros."

Ao longo das últimas semanas, o governo brasileiro se distanciou de iniciativas internacionais, não apoiou resoluções na ONU, não criticou o corte de dinheiro dos EUA para a OMS, não enviou ministros para reuniões, não adotou uma postura de protagonismo no cenário internacional e não foi a uma reunião entre ministros para fortalecer o multilateralismo. Para completar, comprou briga com a China.

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"O Coronavírus nos faz despertar novamente para o pesadelo comunista", adverte o título do texto do chanceler. "Chegou o Comunavírus", escreveu o ministro, conhecido por suas posições próximas ao governo dos EUA.

Segundo ele, a ideia de transferir poderes para a OMS seria o primeiro passo de um plano comunista. Araújo insiste que tal ameaça fica esclarecida em uma obra de Slavoj Zizek, "um dos principais teóricos marxistas da atualidade, em seu livreto"Virus", recém-publicado na Itália". "Zizek revela aquilo que os marxistas há trinta anos escondem: o globalismo substitui o socialismo como estágio preparatório ao comunismo. A pandemia do coronavírus representa, para ele, uma imensa oportunidade de construir uma ordem mundial sem nações e sem liberdade", disse o brasileiro, que indica a influência do autor em diversos meios.

O ministro das relações exteriores parece atuar na contramão da história e da Constituição e desconhecer os preceitos que regem as relações diplomáticas do Brasil.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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