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Um crime de desacato cometido contra um juiz federal

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Carro do juiz Renato Borelli. FOTO: REPRODUÇÃO  

Segundo o Correio Braziliense, em 7 de julho de 2022, "o juiz federal Renato Borelli, da 15ª Vara da Justiça Federal em Brasília, foi alvo de ataques na quinta-feira (7/7) na capital. Enquanto dirigia, o veículo do magistrado foi atingido por fezes de animais, terra e ovos no início da tarde. Apesar do vidro dianteiro do carro ter ficado coberto com os dejetos e ter atrapalhado a direção, ele conseguiu conduzir o veículo até um local seguro e não ficou ferido."

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Esse caso está no limite entre o crime de injúria real e o de desacato.

Ocorre injúria real quando a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou meio empregado, sejam consideradas aviltantes. A constatação de que as atitudes foram "aviltantes" pode decorrer da natureza (tapa no rosto) ou do meio empregado (arremesso de excrementos ou de projéteis). Tal conduta é prevista no artigo 140, § 2º, do Código Penal.

Como disse Magalhães Noronha (Direito Penal, volume II, 12ª edição, pág. 141) a lei menciona expressamente o elemento material: violência ou vias de fato aviltantes. Estas últimas são definidas no artigo 21 da Lei de Contravenções. É a ofensa física que não produz lesão ou incômodo de saúde e não deixa vestígios. Mas a lei, como ainda expressou Magalhães Noronha, fala em violência, que se pode concretizar numa lesão corporal, havendo, assim, o concurso de delitos (artigo 51, § 1º, primeira parte) com aplicação cumulativa de penas. Quanto as vias de fato (contravenção), são absorvidas pelo delito em tela.

Mas é necessário que a prática seja aviltante, em si mesma ou pelo meio usado. São consideradas como injúria real: a chicotada, a bofetada, a esputação, o arremesso de excrementos etc. Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (Manual de Direito Penal, Parte Especial, volume II, 25ª edição, pág. 143) ainda fala em marcação a faca ou a ferro em brasa etc. Disseram ainda que elas podem ser aviltantes em si mesmas: "a bofetada, o corte ou puxão de barba, a apalpação de certas partes, mas sem o fim libidinoso, o rasgar as roupas de uma mulher, cavalgar o ofendido, pintar a cara com pixe, virar-lhe o paletó pelo avesso etc,", como ainda afirmou o Ministro Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume VI, 4ª edição, 1.980, pág. 109). Do mesmo modo, atirar excremento ou outra imundície etc.

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Outro é o crime de desacato que dele se aproxima, repitamos.

No crime de desacato o sujeito passivo é o Estado.

Prevê o artigo 331 do Código Penal o crime de desacato com a seguinte redação: ¨Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela¨. A pena é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo.

O Código Penal do Império considerava agravada a calúnia (artigo 231) e a injúria (artigo 237, parágrafo segundo) se fossem praticadas contra qualquer depositário ou agente da autoridade pública, em razão de seu oficio, seguindo a linha das Ordenações Filipinas (Livro V, título 50).

Com o Código francês de 1810 (artigo 222) a ofensa e o desrespeito a certos funcionários, no exercício de suas funções, passaram a constituir o crime autônomo, com o nome de outrage. No direito italiano, o crime tomou no nome de oltraggio. No entanto, para doutrinadores como Carrara (§ 1.792), haveria um crime contra a honra agravado.

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O Código Penal de 1890, com o nome de desacato (classificado entre os crimes contra a segurança interna da República) punia o fato de desacatar qualquer autoridade ou funcionário público, em exercício de suas funções, ofendendo-o, diretamente, por palavras ou atos, ou faltando à consideração devida e à obediência hierárquica (artigo 134). Por sua vez, o crime seria qualificado se fosse praticado em sessão pública ou dentro de repartição pública.

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Esclareceu a Exposição de Motivos do ministro Francisco Campos, no preâmbulo do Código de 1940: "O desacato se verifica não só quando o funcionário se acha no exercício da função (seja ou não, o ultraje infligido propter officium), senão também quando se acha extra officium, desde que a ofensa seja propter officium."

Na lição trazida por Paulo José da Costa Jr.(Comentários ao Código Penal, volume III, pág. 511), "o que se faz indispensável é que o funcionário seja atingido diretamente, que ouça o aleive que lhe é assacado". Disse Paulo José da Costa Jr. que "não será necessário que a ofensa seja irrogada facie ad faciem. Será bastante que o ofendido esteja próximo."

O desacato, que é um crime de expressão, como disse Riccio (Oltraggio alla pubblica amministrazione, in Novissimo Digesto Italiano, vol. 11, pág. 828), representa a manifestação de um pensamento, por palavras ou gestos. Consequentemente, deverá perfazer-se a conduta na presença do funcionário ofendido. Tal presença é um pressuposto do fato, uma condição indispensável do delito (RT 491:323).

Assim a objetividade jurídica é o interesse em garantir o prestígio dos agentes do Poder Público e o respeito devido à dignidade de sua função, tendo-se em vista que a ofensa que lhes é irrogada, em sua presença, no exercício de sua atividade funcional ou em razão dela, atinge, em verdade, a própria Administração Pública. A lição de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, volume II, artigos 213 a 359, 5ª edição, pág. 461) é aqui repetida, no sentido de que não há, aqui, injúria, difamação ou desrespeito ao funcionário (que seria, eventualmente, crime contra a pessoa), mas atentado a um interesse geral, relativo à normalidade do funcionamento da administração pública. Mas, para que se possa afirmar a presença do funcionário, deve ele encontrar-se no local onde a ofensa é praticada. Não se exige que o ofendido veja o ofensor, nem que perceba o ato ofensivo, bastando que lhe fosse possível conhecimento diretamente do fato.

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Assim a censura justa mesmo que áspera não tipifica o crime. Portanto, não constitui desacato a crítica e mesmo a censura que sejam veementes, desde que não se apresentem de forma injuriosa. Assim já se entendeu que não constitui desacato, a mera censura ou crítica, ainda que veementes e exaltadas, sobre a atuação de servidor público, quando não há adjetivação ofensiva (RT 695/334).

Não há no crime de desacato apenas injúria, difamação ou desrespeito ao funcionário, mas atentado a um interesse geral que diz respeito à normalidade do funcionamento da administração pública.

Trata-se de um crime de expressão que representa a manifestação do pensamento por palavras ou gestos.

O núcleo verbal do tipo penal é desacatar, ofender, vexar, humilhar, espezinhar, menosprezar, agredir o funcionário, ofendendo a sua dignidade ou o decoro da função. É a ofensa direta e voluntária à honra, ao prestígio do funcionário público com a consciência de atingi-lo no exercício ou por causa de suas funções, tutelando-se a dignidade da Administração Pública.

É crime formal de forma que o delito está consumado com a prática da ofensa, tal como ocorre nos crimes contra a honra. É irrelevante para a sua consumação o pedido de desculpas por parte do agente. O crime consuma-se no momento e no lugar em que o agente pratica o ato ofensivo ou profere as palavras injuriosas, desde que a ação se realize em presença do ofendido. Bem exposto por Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 464) que as consequências da conduta delituosa são irrelevantes, no que concerne ao momento consumativo (crime formal), não cumprindo indagar se o funcionário se sentiu ofendido ou se foi abalado o prestígio da função que exerce, não se exigindo a publicidade da ação nem a presença de outras pessoas. Mas se exige que a qualidade de funcionário público seja atual. Aliás, a publicidade da ação será levada em conta na dosimetria da pena. Entende-se, por outro lado, possível a tentativa, salvo nos casos de ofensa oral, como aduziu Magalhães Noronha (Direito Penal, volume IV, pág. 423).

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Pode o desacato constituir-se em palavras ou atos. Assim é desacato: não tomar conhecimento da presença do agente público, do uso de sarcasmo, da injuria, do achincalhe brutal, nas ofensas morais seguidas de agressão física (RT 565/343), no insulto seguido de um tapa, na tentativa de agressão, no uso de palavras de baixo calão (RT 524/363), na gesticulação desrespeitosa, nas palavras ou atos que espezinhem o funcionário público, na forma grosseira, arrogante, de se dirigir ao funcionário público, na tapa no rosto ainda que não deixe vestígios, na afronta ao magistrado com irreverência ao mesmo, no amassar, atirar sobre balcão do cartório contrafé recebida e proferir expressões inamistosas contra o funcionário.

Para tanto são necessários: o nexo funcional, que a ação ocorra quando o funcionário esteja no exercício da função ou não estando, que a ação se verifique em função dela (que diga respeito a sua função); a presença do funcionário por ocasião da ofensa (RT 602/405). Mas Nelson Hungria (obra citada, v. IX, pág. 421) ensina que não é necessário que a ofensa seja irrogada facie ad faciem, bastando que próximo o ofendido, seja por ele percebida. Mas é indispensável que o funcionário público veja ou ouça a injúria que lhe é assacada, estando no local (RT 491/323, dentre outros). Tal presença é um pressuposto do fato, uma condição indispensável do delito.

Assim não se admite que o delito seja praticado por escrito, por telefone (RT 429/352), por e-mail, pelo twitter, por fax, por escrito, através de recurso ou petição.

Pode o desacato constituir-se em omissão quando alguém não responder ao cumprimento do funcionário público.

Quando o desacato se traduz em agressão física, subsiste apenas esse delito pela regra da consunção, absorvido o crime de lesões corporais (RT 440/463), 573/399). No mesmo se dá com relação a tentativa de agressão ou ameaça (RT 461/436). No entanto, há concurso formal se se tratar de lesões corporais graves e de calunia (RT 530/414), como ensinou Nelson Hungria (obra citada, v.IX, pág. 421 e 412).

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Para o caso acontecido de desrespeito ao juiz federal que determinou a prisão do ex-ministro da justiça e de outros que concorreram para aquele fato, houve o crime de desacato, crime de ação penal pública incondicionada, devendo o Ministério Público Federal tomar as providências legais.

Observe-se que o juiz federal, que foi vítima do crime, não estava no exercício de função pública de judicatura, mas, em razão dela, foi agredido.

Caberá ao Juizado Especial Federal do Distrito Federal a competência para julgar o delito por ser crime de menor potencial ofensivo.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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