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Um ano da alteração da Lei de Recuperação Judicial: entenda o que mudou

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Por Camila Somadossi e Ligia Cardoso Valente
Atualização:
Camila Somadossi Gonçalves da Silva e Ligia Cardoso Valente. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei de Recuperação Judicial de Empresas e Falências, Lei nº 11.101/2005 foi criada em 2005, e, com quinze anos da sua vigência, no ano de 2020, teve alguns de seus dispositivos alterados com a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020.

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As alterações tiveram como objetivo a superação de algumas ineficiências do texto anterior, visando o aprimoramento e celeridade do procedimento, principalmente após o cenário de crise socioeconômica global que se deu pela decretação da pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que trouxe novidades tanto aos credores quanto aos devedores.

Dentre as novidades inseridas pela Lei nº 14.112/2020, destacam-se as de maior impacto aos envolvidos, iniciando-se pela previsão legal do uso de métodos autocompositivos/alternativos de solução de conflitos, representados pela mediação e conciliação no processo de Recuperação Judicial que antes, apesar de algumas vezes utilizados no curso do processo, não eram regulados por disposição específica legal que autorizasse ou fundamentasse o seu uso pelos Juízes.

A mediação foi disposta para uso de modo preventivo nos processos de recuperação judicial. Nesse caso, o devedor que tenha interesse em reestruturar as dívidas existentes pode convocar os seus credores a participar de sessões de mediação, podendo optar em fazê-lo em grupos homogêneos, com mesma classificação da dívida, e, já com o pedido de instauração do procedimento. No caso de concretizado um acordo entre as partes homologado pelo Juízo, com o seu cumprimento pelo credor, se evitaria o ajuizamento de um pedido de recuperação judicial.

No entanto, eventual descumprimento do acordo pelo devedor não prejudicaria os credores, pois, caso o devedor ingresse com o pedido de recuperação judicial em até 360 dias do acordo na transação pré-processual, serão reconstituídos os direitos e as garantias dos credores em suas condições originais, com a amortização do que eventualmente houver sido pago.

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A vantagem para o devedor, além de evitar os custos do processo de recuperação judicial, consiste no fato de que durante este procedimento ele poderá requerer a suspensão das execuções contra si movidas e dos seus atos expropriatórios, pelo prazo de 60 dias, no que diz respeito aos débitos objeto da negociação, como um stayperiod antecipado, sendo que, em caso de ajuizamento do pedido de recuperação judicial, haverá também o abatimento do tempo de suspensão utilizado, a fim de resguardar também os credores.

Outra alteração interessante foi a regulamentação da constatação prévia em casos de recuperação judicial ajuizada, o que embora tivesse se tornado uma prática recorrente, também não era previsto em Lei anteriormente.

Agora a Lei de Recuperação Judicial dispõe expressamente que, após a distribuição do pedido de recuperação judicial, deve ser determinada a realização da constatação prévia, que se dará como uma perícia, a fim de se verificar as reais condições de operação da empresa requerente, bem como se as descrições feitas na petição inicial e na documentação que a acompanha correspondem à realidade, sem, contudo, adentrar no mérito da viabilidade da empresa, o que se resguarda para a análise dos credores quando da apreciação do plano de recuperação judicial.

Ainda, deferido o pedido de recuperação judicial, a Lei prevê que seja fixado um prazo de suspensão dos processos e atos de execução que tramitem em face do devedor, o chamado stayperiod, na medida que o prosseguimento destes feitos inviabilizaria a superação da crise e este ponto também foi objeto de alterações.

Na redação original, a Lei previa que esse prazo seria de 180 dias, improrrogáveis, dispondo a nova redação de que esse prazo será prorrogável, uma única vez, por mais 180 dias, condicionada a não ter o devedor contribuído para a lentidão do processo, atendendo a reforma legal ao que já se via na prática.

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Com a nova redação, a Lei também detalha as medidas suspensas, que são (i) o curso da prescrição, (ii) as execuções contra o devedor por créditos sujeitos ao processo e (iii) qualquer forma de "retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial".

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A alteração legislativa também dispôs que é possível a antecipação dos efeitos da recuperação judicial ou extrajudicial por meio de tutelas provisórias com o objetivo de resguardar patrimônio de execuções de créditos enquanto não deferido o processamento do pedido de recuperação judicial ou não homologado o plano de recuperação extrajudicial, desde que presentes determinados requisitos. O mesmo pode ocorrer em processos de mediação já instaurados, desde que presentes os requisitos para o pedido de recuperação judicial ou extrajudicial.

Essa autorização, na prática, permite que o devedor, em dificuldade financeira e na iminência da realização de atos expropriatórios pelos seus credores, consiga se valer dos efeitos da Recuperação Judicial mesmo sem ter reunido todos os documentos e preenchido os requisitos necessários ao ajuizamento do processo principal.

Tratando-se os processos de recuperação judicial e falência de interesse de credores e devedores, a sua duração deve ser o breve possível para atingir a satisfatória conclusão, dispondo agora a Lei, ainda, sobre a sua prioridade de tramitação frente aos outros processos, salvo os habeas corpus e demais prioridades previstas em Lei, bem como a fixação do entendimento de que os prazos da Lei ou que dela decorram devem ser contados em dias corridos.

Porém, como qualquer outra Lei, as mudanças implementadas na Lei 11.101/05 também passam por interpretação de seus usuários e dos Tribunais responsáveis pelo julgamento das demandas, tendo ainda sido admitido, em muitos casos, o uso da contagem dos prazos em dias úteis quando se tratar de procedimentos previstos na Lei Geral, qual seja o Código de Processo Civil, ou seja, defesas e recursos.

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Outra novidade é que os credores passaram a ter o direito de apresentar um plano de recuperação judicial alternativo ao apresentado pelo devedor quando este não for apresentado para deliberação em assembleia dentro do prazo de suspensão das ações e quando este tiver sido rejeitado pela coletividade de credores. Assim, caso o plano proposto pelos credores e submetido à assembleia geral também venha a ser rejeitado, a recuperação judicial será convolada em falência, sendo que antes da vigência desta Lei, a falência já era decretada imediatamente após a rejeição do plano, inexistindo essa possibilidade de nova negociação.

A convocação de Assembleia Geral de Credores para deliberação do plano de recuperação judicial, ainda, segundo as alterações legais, passou a poder ser dispensada com a inclusão do dispositivo legal que prevê que este ato solene pode ser substituído por termo de adesão subscrito pelos credores, no mesmo quórum necessário à aprovação do plano.

Já o processo de financiamento do devedor em recuperação judicial também sofreu alteração. O DIP Financing (debtor in possession), mais importante modalidade de financiamento destinado à empresa já em recuperação judicial garante ao financiador que este terá determinados privilégios no recebimento do crédito concedido e, à empresa em recuperação judicial, a chance de obtenção de crédito novo para o soerguimento.

A concessão do DIP Financing pode se dar por pessoas físicas e jurídicas, inclusive sócios, familiares e integrantes do grupo da empresa em recuperação judicial e não somente por instituição financeira, sendo autorizada a garantia do crédito pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante.

A obtenção de crédito nesta modalidade está sujeita à autorização do Juiz ou disposição no plano de recuperação judicial, visando dar ampla publicidade aos demais credores sobre a condição do financiamento e os bens dados em garantia pelo devedor, podendo estes ser de terceiros.

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O cumprimento das exigências legais assegura ao financiador o recebimento e, em caso de inadimplemento, seja na recuperação judicial ou na falência, poderá se valer das garantias recebidas. Esta modalidade também garante a extraconcursalidade do crédito concedido e o recebimento pelo credor antes mesmo dos credores fiscais e dos com garantia real.

Ainda, temos o instituto fresh start, oriundo do direito falimentar americano, que surgiu em nossa legislação com o objetivo de acelerar a recuperação do empresário que passou pelo processo de falência e reinseri-lo na atividade econômica de maneira mais célere e eficaz, trazendo a ideia de que o empresário poderá recomeçar o quanto antes, inclusive em outra atividade econômica.

Com relação à atuação da Fazenda Pública nos processos de recuperação judicial e falência, há diversas novidades, destacando-se o novo "incidente de classificação do crédito público", a ser instaurado de ofício na falência, com a convocação desta para que possa habilitar seus créditos na falência de modo mais seguro, eficaz e transparente, bem como a impossibilidade de alienação de bens na recuperação judicial quando não restar patrimônio suficiente para pagamento do Fisco.

Como meio de resolução das dívidas tributárias, a Lei dispôs também que as Fazendas Públicas e o INSS poderão deferir o parcelamento do débito fiscal, sendo que, atualmente, há a previsão de parcelamento em até 120 vezes e a possibilidade de "liquidação de até 30% da dívida consolidada no parcelamento com a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal.

Já para o produtor rural pessoa física a Lei sedimentou o entendimento dos Tribunais Superiores de que este poderá requerer a sua recuperação judicial, desde que o valor da causa não ultrapasse R$ 4,8 milhões e se comprove o exercício da atividade empresarial pelo prazo de dois anos.

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A Lei, contudo, prevê relevantes restrições com relação aos créditos sujeitos ou não ao instituto, diferentemente do que se tem para os outros agentes econômicos, se submetendo ao feito somente os créditos devidamente contabilizados na documentação exigida para o pedido, ainda que não vencidos e os que decorram exclusivamente da atividade rural, ficando também excluídos os créditos de fomento à atividade rural concedidos sob instruções do Conselho Monetário Nacional (Lei 4.829/1965) que tenham sido renegociados em algum momento e aqueles que decorram da aquisição de propriedade rural, concedidos nos três anos anteriores ao pedido, o que vale tanto para o produtor rural empresário, quanto para o produtor rural pessoa física.

Como modalidade alternativa de negociação de passivo, a recuperação extrajudicial também sofreu alterações para possibilitar o seu uso para negociação de créditos trabalhistas, além de poder optar o devedor por abranger no procedimento a totalidade de uma ou mais espécies de créditos ou grupo de credores de mesma natureza e sujeito a semelhantes condições de pagamento, à escolha do devedor com exceção dos taxativamente excluídos pela lei.

Uma vez homologado judicialmente, o plano de recuperação extrajudicial obriga a todos os credores das espécies por ele abrangidas, exclusivamente em relação aos créditos constituídos até a data do pedido de homologação, ainda que não tenham formalmente aderido à proposta. O pedido de homologação judicial pode ser apresentado com 1/3 de adesão dos credores das categorias abrangidas, sendo necessário para a homologação a obtenção de concordância de metade dos credores e do sindicato em caso de versar o plano sobre créditos trabalhistas.

Em resumo, a maior parte das alterações acima destacadas têm permitido maior efetividade na reestruturação das empresas que estejam passando por dificuldades financeiras e, de forma geral, maior clareza com relação a procedimentos judiciais que até então vinham sendo reconhecidos pela jurisprudência, apesar de não haver previsão legal.

*Camila Somadossi Gonçalves da Silva, advogada especialista da área de Recuperação Judicial e sócia do escritório Finocchio & Ustra Advogados

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*Ligia Cardoso Valente, advogada especialista da área de Recuperação Judicial do escritório Finocchio & Ustra Advogados

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