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'Uberização' requer revisão de conceitos que definem relação de emprego

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Por Alan Dantas
Atualização:
Alan Dantas. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acaba de determinar, no Conflito de Competência 164.544, que cabe ao Juizado Especial Cível de Poços de Caldas (MG) julgar o processo de um motorista contra a Uber, que suspendeu sua conta. O colegiado entendeu que não há relação de emprego no caso.

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Essa decisão destaca a necessidade de modernização da interpretação atual da matéria na seara trabalhista. Segundo o STJ, não estavam previstos, no caso, os critérios para a determinação da relação de emprego. A questão é que, com a transformação econômica e a coletivização do trabalho, talvez precisemos rever conceitos como o de alteridade e subordinação, que definem essa relação, de acordo com os arts. 2º e 3º da CLT

Atualmente, mostra-se como terreno fértil a discussão acerca da "uberização" de toda a economia, mas a própria empresa Uber, que mantém um dos aplicativos mais utilizados no transporte de pessoas do mundo, com atuação em mais de 60 países, sendo mais de 100 cidades no Brasil, convive com riscos trabalhistas que podem desconstruir seu modelo de negócio.

Sobre este paradigma, uma das principais decisões sobre o tema ocorreu no Reino Unido em 2016 e 2017 prolatada pelo Employment Tribunal e pelo Employment Appeal Tribunal, respectivamente, que atestaram a necessidade de concessão de direitos mínimos aos motoristas na condição de workers. Esta é uma categoria híbrida entre trabalhadores autônomos e subordinados, diversa dos trabalhadores subordinados em sentido estrito, conhecidos como employees (empregados).

Na mesma toada foi a Suprema Corte da Califórnia, terra natal da gig economy (caracterizada por mão de obra freelancer, sob demanda ou de "bicos"), que em 30 de abril de 2018 fixou como regra geral a condição de empregados dos trabalhadores de aplicativos como o Uber. Salvo se comprovado que o trabalhador é livre do controle e direção da empresa contratante, incluindo modo de execução do trabalho, ausência de relação dos serviços prestados com a atividade principal da empresa e integração do trabalhador em outra e independente ocupação.

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Por outro lado, entretanto, o National Labor Relations Board - órgão equivalente ao extinto Ministério do Trabalho brasileiro - entende a relação entre motoristas e aplicativo como autônoma, como na referida decisão do STJ, afastando a configuração do vínculo de emprego. O que demonstra a contravertida e fértil matéria para discussão.

No Brasil, já se destacava o enfrentamento entre as esferas civilista e trabalhista diante do crescente entendimento acerca da configuração do vínculo de emprego entre motoristas e a empresa em questão, na seara trabalhista, conforme voto vencedor no processo 1000123-89.2017.5.02.0038, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região:

"Se se tratasse de mera ferramenta eletrônica, por certo as demandadas não sugeririam o preço do serviço de transporte a ser prestado e sobre o valor sugerido estabeleceriam o percentual a si destinado. Também não condicionariam a permanência do motorista às avaliações feitas pelos usuários do serviço de transporte. Simplesmente colocariam a plataforma tecnológica à disposição dos interessados, sem qualquer interferência no resultado do transporte fornecido, e pelo serviço tecnológico oferecido estabeleceriam um preço/valor fixo a ser pago pelo motorista pelo tempo de utilização, por exemplo."

Na decisão do Conflito de Competência 164.544, o STJ consignou que a Uber, por meio de um aplicativo, é responsável pela aproximação entre motoristas parceiros e clientes, sem qualquer relação hierárquica, "porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes".

Ainda que discutível a interpretação do STJ quanto aos elementos caracterizadores da relação de emprego, situação a ser explorada em artigo apropriado, não há como se negar o destaque de uma nova abordagem sobre a relação entre motoristas e empresa de intermediação.

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Neste passo, o acórdão consolidou em seu texto que o sistema privado individual, a partir de provedores de compartilhamento, possuiria natureza de cunho civil e regulada Lei nº 12.587/2012, em uma modalidade denominada economia compartilhada (sharing economy):

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"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR MOTORISTA DE APLICATIVO UBER. RELAÇÃO DE TRABALHO NÃO CARACTERIZADA. SHARING ECONOMY. NATUREZA CÍVEL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL. 1. A competência ratione materiae, via de regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo. 2. Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil. 3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. 4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. 5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual."

Tais decisões evidenciam a necessidade do debate sobre a matéria, principalmente, quanto ao clássico entendimento estampado nos arts. 2º e 3º da CLT, quanto a relação de emprego, pois com a transformação econômica e a coletivização do trabalho observa-se que conceitos enraizados não mais seriam suficientes para dar conta das questões contemporâneos, sobretudo, quanto a alteridade e a subordinação.

O risco da atividade econômica assumida pelo empregador, estampado no art. 2º da CLT, entra em nítido confronto com a "uberização" do trabalho, pois neste regime os riscos são coletivizados a uma multidão de trabalhadores autônomos. No mesmo passo, a subordinação configuradora da relação de emprego, antes identificada quando presentes, por exemplo, o poder de fiscalização, de punição e gestão, é agora parcialmente diluída em uma massa de consumidores, que passarão a pontuar o desempenho de cada prestador, e na própria empresa, que determinará diretrizes básicas para a permanência do cadastro no aplicativo, tais como nota mínima, número de corridas, entre outras.

Observa-se que a subordinação subjetiva, nos termos propostos pelo art. 3º da CLT, não parece ser tão clara ao se analisar a perspectiva da gig economy, quando se torna fértil o terreno para a discussão sobre a subordinação objetiva, prestação de serviço em prol dos objetivos sociais da empresa, ou estrutural, quando a prestação de serviço vai ao encontro a dinâmica e cultura do negócio. Esta poderia levar, de acordo com alguns doutrinadores e decisões, a configuração do vínculo empregatício.

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Diante deste panorama, é extremamente relevante analisar a adaptação dos conceitos clássicos, ainda que valorosos, à modernização das práticas empresariais.

Seria o caso de uniformizar o entendimento jurisprudencial pátrio quanto à natureza civil da relação, nos termos do STJ? Ou seria o caso de uma nova interpretação dos critérios centrais da relação de emprego? Ou seria necessária a quebra do binômio empregado/não empregado, com o surgimento de outras vias que garantam uma proteção jurídica a esses trabalhadores autônomos economicamente dependentes?

Nesse sentido, será fundamental a equalização dos entendimentos civilistas e trabalhistas, e entre a livre iniciativa/ liberdade econômica das empresas e a proteção aos trabalhadores lato sensu. Por um lado, é importante levar em consideração os impactos sociais de se negar a proteção jurídica adequada àqueles economicamente dependentes. De outra forma, porém, não se pode desconsiderar o impacto econômico da inviabilização do modelo de negócios como o da Uber.

*Alan Dantas, especialista em Direito do Trabalho do Balera, Berbel & Mitne Advogados

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