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Tuberculose: a realidade paralela dos presídios

Por Guilherme Roberto Guerra e Felipe César Lourenço
Atualização:
Guilherme Roberto Guerra e Felipe César Lourenço. Fotos: Divulgação  

É dever constitucional do Estado brasileiro garantir o acesso universal e igualitário à saúde e às políticas que visam a prevenção e o combate às enfermidades, sendo este direito assegurado a todas pessoas, inclusive à população carcerária. 

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Apesar da garantia deste direito, a falta de estrutura e as condições degradantes a que os presos estão expostos resultam em alta incidência de doenças respiratórias, o que, além de configurar violação aos direitos fundamentais destes indivíduos, impede que o Brasil avance como deveria nos indicadores de saúde pública.

A pandemia do coronavírus evidenciou o severo impacto das crises sanitárias sobre a sociedade em geral e, especialmente, que a calamitosa situação dos presídios brasileiros faz com que a população carcerária sofra desproporcionalmente as suas consequências. Este cenário, entretanto, não é novidade. Há décadas o Brasil tem enfrentado uma infecção de igual (ou maior) gravidade: a tuberculose. 

Alinhado ao esforço mundial de erradicação da tuberculose, coordenado pela OMS desde 1993, o Brasil desenvolveu em 2017, o Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública, com o objetivo de reduzir o número de contaminados no Brasil para 10 casos por 100 mil habitantes em 2035.

Em 2001, o número de pessoas diagnosticadas com tuberculose era de 42,7 para cada 100 mil habitantes. Após tendência de queda - com aumentos pontuais - esta proporção caiu para 35, em 2019, conforme Boletim Epidemiológico 2020 - Tuberculose, do Ministério da Saúde.

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Este progresso tem sido modesto, com redução do coeficiente de incidência em 7,7 casos por 100 mil habitantes em pouco menos de 20 anos. Ainda que fosse mantida a curva de queda obtida até 2015 - o que não foi o caso -, segundo dados do próprio Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública, a meta ali estipulada possivelmente não seria atingida, projetando-se chegar a 20,7 em 2035 no cenário mais otimista.

O Ministério da Saúde aponta como um dos principais obstáculos à eficiência das políticas  de combate à tuberculose o abandono do tratamento. A cada dez pessoas que iniciam o tratamento, ao menos uma abandona o uso dos medicamentos. 

Entretanto, há outro indicador que nos parece mais relevante para explicar essa ineficiência: a proliferação da doença no cárcere. De forma contrária à projeção governamental de redução de casos, a população carcerária brasileira apresenta altos indicadores de incidência da tuberculose e impulsiona de forma substancial o aumento do número total de casos da doença. 

Se no ano de 2010 a população presa representava 6,4% dos números de casos totais, em 2019 esse número praticamente dobrou, de modo que a população carcerária representa 11,1% do total dos casos de tuberculose, apesar de representar aproximadamente 0,37% por cento da população total. Além disso, a população carcerária brasileira passou de 496.251 em 2010 para 773.151 em 2019 - aumento de cerca de 55% -, enquanto o número de presos infectados passou de 4.625, em 2010, para 8.154, em 2019, um aumento de 76%.

A universalidade do sistema de saúde brasileiro efetivada pelo SUS é um importante  instrumento governamental para o combate da tuberculose. Conforme se verifica pelo documento "Tuberculose tem cura!", produzido pelo Ministério da Saúde, não apenas a vacina BCG, mas os exames clínicos e o acompanhamento ofertados pelo SUS garantem maior êxito no tratamento. Além disso, os medicamentos que combatem a bactéria são disponibilizados gratuitamente à população.

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Apesar das políticas estatais para erradicação da tuberculose, há uma disseminação cada vez maior desta doença entre a população carcerária, o que evidencia a existência de dois Estados paralelos: um atuante na defesa da dignidade e garantia do mínimo existencial e outro em que os direitos básicos não são devidamente ofertados. 

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A disponibilidade de profissionais e a oferta de insumos de básicos de saúde a presos está muito aquém daquela disponível à população geral pelo SUS (que, por sua vez, está muito longe do ideal). Além disso, as prisões são superlotadas e são péssimas as condições estruturais das unidades prisionais (malventiladas e mal-iluminadas). Estes fatores contribuem para as altas taxas de contágio de tuberculose nos presídios, como concluiu estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Outro estudo da própria Fiocruz identificou que as doenças infecciosas foram responsáveis por 30% das mortes o Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro entre 2016 e 2017. O número é três vezes superior ao verificado na população geral do Estado do Rio de Janeiro no mesmo período. Dentre as mortes de presos causadas por doenças infecciosas, 40,7% foram decorrentes de tuberculose, atrás apenas da HIV/Aids.

O estudo indica, ainda, que no caso da tuberculose, a falta de acesso do preso ao diagnóstico e tratamento é o principal fator causador dos óbitos, com destaque para a impossibilidade de acesso dos encarcerados aos serviços de saúde como os fornecidos pelo poder público fora do estabelecimento prisional. 

Percebe-se que a negligência estatal em assegurar o mínimo existencial garantido a todos cidadãos, além de desumanizar aqueles que estão com sua liberdade privada, viola os compromissos assumidos pelo Brasil, inclusive perante a comunidade internacional. 

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Enquanto o mundo está voltado ao combate de uma doença cujo primeiro caso no Brasil foi identificado há sete meses, a população carcerária continua sob a ameaça de uma doença cuja cura já foi identificada e o tratamento é genericamente assegurado pela rede pública de saúde. Esse comparativo é suficiente para demonstrar não apenas a existência de dois Estados paralelos, mas da necessidade iminente de que essa separação se encerre.

*Guilherme Roberto Guerra, graduado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, analista jurídico na 96ª Procuradoria Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo.

*Felipe César Lourenço, graduado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Administrativo pela PUC-SP, advogado pleno, especializado em direito público com foco em licitações, contratos administrativos, projetos de infraestrutura e assuntos regulatórios no Felsberg Advogados e criador da página Pretos no Direito no Instagram.

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