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Três anos da reforma trabalhista e precarização do trabalho em plataformas digitais

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Por Raquel Santana
Atualização:
Raquel Santana. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em novembro deste ano a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) completou três anos. A Lei nº 13.467/17 representa um dos vários reflexos da crise política e econômica brasileiras, acentuada desde junho de 2013, cujo ápice foi o golpe parlamentar sofrido pela então presidente da república, Dilma Rousseff, em 2016.

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A reforma trabalhista foi aprovada em tempo recorde, sendo fruto de uma articulação política e institucional rumo à supressão de direitos trabalhistas nunca vista: em 23/12/2016, o Projeto de Lei nº 6.787/16, de iniciativa da Câmara dos Deputados, propunha uma diminuta alteração de 7 artigos da CLT. Em 9/2/2017, o PL nº 6.787/16 passou a conter a proposta de alteração de mais de 200 artigos do diploma celetista, a qual foi aprovada pela Câmara dos Deputados. Seguindo o trâmite ordinário de aprovação de leis ordinárias, o PL em questão foi remetido ao Senado Federal e lá foi designado como PLC nº 38/17, tendo sido aprovado e sancionado pelo governo, em 13/07/2017, sem modificações da última alteração proposta pela Câmara. No dia seguinte, a Lei nº 13.467/17 foi publicada e entrou em vigor em 11 de novembro de 2017, mesmo com grande resistência dos mais diversos setores da população.

As alterações propostas eram imbuídas de algumas falácias, dentre elas a de que a modernização e a flexibilização da legislação trabalhista supostamente permitiriam a geração de novos empregos e esta seria um dos passos para a superação de parte dos problemas enfrentados pela população brasileira, especialmente a partir da crise social e política de 2016.

No entanto, após 3 anos da entrada em vigor da reforma trabalhista, as suposições que a endossaram caíram por terra, desvelando aquilo que já havia sido previsto pelas análises técnicas justrabalhistas contrárias às alterações no diploma celetista: a reforma trabalhista objetivou, em realidade, o esfacelamento das garantias trabalhistas asseguradas no texto original da CLT.

Três anos após a reforma, a falácia da geração exponencial de empregos por meio das alterações celetistas pode ser confrontada sem dificuldades. A análise comparativa das taxas de desemprego no Brasil (ou "desocupação", na nomenclatura oficial utilizada pela PNAD Contínua do IBGE) revela seu aumento vertiginoso nos últimos três anos.

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Em dezembro de 2016, como reflexo da crise econômica vivenciada pelo país, a taxa de desocupação da PNAD Contínua demonstra que 12,0% da população brasileira com idade para trabalhar e em busca de trabalho estava desocupada. Esse foi o maior nível até então experienciado pelo país. Em novembro de 2017, mês de entrada em vigor da reforma trabalhista, o nível de desocupação alcançou o patamar de 11,8%, apresentando, portanto, pequena redução. Entre janeiro e março de 2018, referidos níveis atingiram o patamar de 13, 1%. Finalmente, entre julho e agosto de 2020, já durante a grave crise social desencadeada pela pandemia, o patamar de desocupados no Brasil atingiu 14,6% de toda a população brasileira (total de 175.121 mil pessoas) - maior nível experienciado desde janeiro de 2012.

As taxas de desocupação/desemprego apuradas pelo IBGE até agosto de 2020 perfazem-se como algumas das consequências da reforma trabalhista, que foi aprovada sem qualquer diálogo social, em uma empreitada pontualmente antidemocrática e voltada ao acolhimento de medidas neoliberais, cujos reflexos na seara trabalhista divergem das falácias que endossaram a sua aprovação.

Durante o ano de 2020, outra forma de confrontar as falácias da flexibilização das relações trabalhistas como sinônimo de geração de maiores e melhores condições de trabalho e emprego pode ser visualizada a partir da expansão dos trabalhos em plataformas digitais, como aqueles realizados por entregadores de delivery.

Neste mesmo contexto, a partir da inserção de novas tecnologias de comunicação e informação nas dinâmicas laborais, observa-se que os trabalhadores precisaram se lançar em trabalhos informais e precários vinculados a plataformas digitais. Com isso, passaram a assumir todos os riscos pela execução do trabalho, ficando submetidos a jornadas extensas com baixíssimas remunerações- situação agravada durante a pandemia. Esse cenário faz parte de um fenômeno mais complexo: a uberização do trabalho. Esta, por sua vez, interrelaciona-se de forma pontual com as principais medidas que levaram à aprovação da reforma trabalhista: a flexibilização extrema das relações de trabalho, sob a gerência de gigantes conglomerados empresariais que se escondem sob o véu da "modernização" para negar direitos mínimos aos trabalhadores. No caso da reforma trabalhista, assim como se observa nos trabalhos vinculados a plataformas digitais, a suposta modernização das relações de trabalho é mero subterfúgio discursivo.

Na linha de intersecção entre esses dois espectros é importante visualizar que o "moderno" trabalho vinculado a plataformas digitais já era vastamente observado durante o período em que a reforma trabalhista foi proposta, o que levou, inclusive, à aprovação da lei nº 12.551/2011, por meio da qual se modificou o artigo 6º, da CLT, incluindo-se nele o parágrafo único. A partir destes dispositivos, passou-se a prever no regime celetista que a subordinação jurídica, elemento fático-jurídico essencial ao reconhecimento do vínculo empregatício, pode ser identificada a partir dos meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão.

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Em que pese essa disposição expressa, a inexistência de seção específica na CLT que contemple a "moderna" relação de trabalho daqueles vinculados a plataformas digitais, ao lado da ideia que se tenta difundir de que eles seriam "empreendedores de si", tem sido alguns dos subterfúgios para os grandes conglomerados negarem direitos à categoria. Subterfúgios como esses são vastos nas diversas passagens dos mais de 200 artigos alterados pela reforma trabalhista e estão imersos na mesma lógica neoliberal: precarização de direitos como recurso ao aumento da lucratividade empresarial.

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Não obstante, se, por um lado, as empresas de aplicativos se recusam a reconhecer direitos básicos a esses trabalhadores, estes, por outro lado, têm se organizado coletivamente em greves históricas pela reivindicação de melhores condições de trabalho e, em alguns movimentos específicos, pelo reconhecimento do vínculo de emprego com as plataformas.

Por sua vez, o Judiciário brasileiro, sobretudo as Varas Trabalhistas e Tribunais Regionais do Trabalho já vem desenhando a possibilidade de enquadramento dessa categoria obreira no rol de proteção celetista, via de regra, com suporte na previsão combinada do artigo 6º, §único da CLT e arts. 2º e3º. A discussão ainda está longe de ser pacificada no Judiciário, eis que o Tribunal Superior do Trabalho, corte uniformizadora de decisões em matéria trabalhista no país, debruçou-se sobre o mérito da questão em apenas 3 oportunidades.

Nas duas primeiras (AIRR - 10575-88.2019.5.03.0003 e RR - 1000123-89.2017.5.02.0038), a 4ª e a 5ª Turma entenderam, respectivamente, pela impossibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício dos Reclamantes com as plataformas digitais. No entanto, em recente pronunciamento da 3ª Turma, o Relator dos autos 100353-02.2017.5.01.0066, Ministro Maurício Godinho Delgado, proferiu voto favorável ao reconhecimento da subordinação jurídica no caso analisado com apoio jurídico no artigo 6º, §único da CLT. O julgamento deste caso foi suspenso com o pedido de vista regimental dos demais integrantes da Turma e ainda não há nova data para a sua retomada.

As greves horizontalmente organizadas pelos trabalhadores vinculados a aplicativos em 2020 e o recente reconhecimento do Judiciário sobre a importância da previsão do artigo 6º, §único da CLT são alguns dos mecanismos de resistência aos impulsos de flexibilização, precarização e informalização das relações de trabalho. Por consequência, estes mecanismos também fazem frente aos retrocessos trabalhistas inaugurados com a entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, pontuando-se no curso da história também como resistência específica aos efeitos e as falácias nas quais a reforma trabalhista foi apoiada.

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*Raquel Santana é advogada trabalhista, mestre em Direito, Estado e Constituição (FD/UnB) e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados

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