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Transparência na aquisição de vacinas para diminuir distâncias entre palavras e realidade

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Por Ligia Maura Costa
Atualização:
Ligia Maura Costa. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Notícias recentes de políticos e familiares furando a fila da vacina, de falhas na aplicação das vacinas, com seringas vazias e desvio de doses e de cláusulas contratuais ambíguas em contratos governamentais duvidosos são alguns exemplos do que pode dar errado quando a demanda mundial é muito superior à oferta e, em particular, quando isso ocorre num ambiente de corrupção sistêmica, como é o caso do Brasil. O mundo enfrenta uma crise de saúde pública com a rápida disseminação do vírus Sars-CoV-2 e da sua doença, a Covid-19.  O surto pandêmico afeta a todos os países, sem exceção, que lutam contra um inimigo invisível para controlar a pandemia. Mais de 100 milhões de pessoas já tiveram a doença e mais de 2,5 milhão perderam a vida na batalha contra o vírus. Esses números são preocupantes e não param de aumentar. A aquisição de vacinas é - ou pelo menos deveria ser - prioridade máxima de todos os governos. Só as vacinas salvam vidas! A aquisição de vacinas seguras e em quantidade suficiente para todos é essencial na luta contra o vírus e na retomada do crescimento econômico mundial.

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A corrupção pode, contudo, comprometer as respostas governamentais à pandemia e com isso negar o acesso às vacinas para todos. Segundo estimativa da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) esquemas de corrupção afetam de 10% a 25% dos recursos mundiais gastos com compras governamentais, sendo que a maior parte deste percentual corresponde às compras governamentais de suprimentos médicos e medicamentos, isto em condições não pandêmicas. A corrupção é como um vírus que se alastra livremente em tempos de crise, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Ela prejudica a capacidade governamental de oferecer os cuidados de saúde minimamente eficazes e adequados, principalmente para os mais necessitados.

O paradoxo da corrupção no setor da saúde é que apesar de perdas mundiais de mais de US$ 500 bilhões/ano, segundo relatório da Transparência Internacional, o setor conta com tímidos mecanismos de accountability e de transparência. A transparência nas contratações públicas para aquisição e distribuição das vacinas para o enfrentamento da Covid-19 é a única forma de garantir a eficiência e integridade das compras governamentais. Só assim as populações mais vulneráveis serão de fato priorizadas e imunizadas. E, a maneira como governos gerenciam a aquisição de vacinas durante essa calamidade pública mundial terá impacto relevante na forma como eles conterão a doença nos seus respectivos países e no número de vidas que serão salvas.

No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi criado em 18 de setembro de 1973. O mascote oficial é o popular personagem Zé Gotinha. O PNI é um dos maiores e mais eficientes programas de vacinação do mundo, reconhecido nacional e internacionalmente. Enquanto perdurar a emergência de saúde pública da Covid-19, a Lei nº 14.125, de 10 de março de 2021, autorizou a aquisição de vacinas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios e pelas pessoas jurídicas de direito privado. Parte importante da resposta brasileira à pandemia se dará através de contratações transparentes, sejam elas públicas ou privadas. A sociedade civil têm o direito de saber como os entes governamentais e as pessoas jurídicas de direito privado autorizadas por Lei tomarão as decisões e, particularmente, como os recursos públicos serão gastos efetivamente, pois está em jogo a vida de milhões de pessoas.

A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) obriga o poder público a realizar uma gestão transparente, permitindo à sociedade o acesso de dados públicos e garantindo a transparência e a integridade à população. O acesso à informação pode evitar o mau uso dos recursos públicos, os conflitos de interesse e as propinas em geral, na aquisição das vacinas. Há claro interesse público em saber como e quando a sociedade brasileira terá acesso às vacinas; qual o nome do fabricante; quem serão os intermediários; quantas vacinas foram contratadas; qual o cronograma de entregas; qual o valor do contrato, entre outros.

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Atende apenas em parte o anseio da sociedade de saber o que está sendo feito para salvar vidas, a publicação dos extratos dos contratos assinados no diário oficial. Só a publicação integral dos contratos, em local de fácil acesso a todos, como no caso do contrato de encomenda tecnológica com a AstraZeneca disponível no site da Fiocruz, permite o monitoramento em tempo real das contratações pela sociedade civil. Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, a Lei de Acesso à Informação não se aplica a elas, embora estas tenham sido autorizadas a participar como players no mercado global de aquisição de vacinas. Diante da situação emergencial que vivemos, a questão que se coloca é se a iniciativa privada não deveria também estar sujeita à transparência de informações. A confidencialidade aqui só encoraja a desconfiança da população. Nada do que está sendo feito para responder à maior crise humanitária do século é business-as-usual, fica portanto a sugestão. Manter em sigilo as contratações do setor privado só serve para encorajar o ceticismo sobre as vacinas e a crescente desconfiança em relação aos motivos desta participação, num país reconhecido internacionalmente pela excelência de seu programa de vacinação (PNI).

A falta de transparência pode fazer com que preços muito mais altos sejam pagos pelos diferentes entes autorizados a comprar as vacinas, além de criar uma concorrência desleal diante da participação da iniciativa privada, num mercado já altamente competitivo mundialmente, dada a falta dos imunizantes. Vacinar o quanto antes a população é prioritário. Mas apenas uma resposta transparente, com a melhoria dos mecanismos de accountability, poderá ajudar o país a salvar vidas, reconstruir sua economia e prevenir as desigualdades entre ricos e pobres na imunização, que a falta de transparência certamente causará.

*Ligia Maura Costa, professora titular na FGV EAESP, coordenadora do FGVethics, advogada

Este artigo faz parte de uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), com publicação periódica. Acesse aqui todos os artigos.

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