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Transgêneros nas prisões femininas: o silogismo falho e a ADPF 527

Por Tatiana A. de Andrade Dornelles
Atualização:
Tatiana A. de Andrade Dornelles. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Esta é uma história de como uma boa intenção pode transformar-se em uma má ideia. Comecemos introduzindo o silogismo falho. Premissa 1: Travestis e transexuais são vulneráveis em prisões masculinas. Premissa 2: Presídios femininos são mais seguros para travestis e transexuais. Conclusão: Travestis e transexuais devem ser transferidos para presídios femininos.

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O silogismo simples é a relação formal de três proposições: duas premissas que têm um termo comum (termo médio), de onde emergirá uma conclusão, na qual o termo médio não aparece. Qual é o problema no raciocínio sobre os presídios? Entre outros equívocos, ele viola diversas regras da lógica: não há um termo médio que foi excluído na conclusão; não há apenas três proposições e a conclusão não é derivada de uma operação lógica das premissas.

Ainda assim, é o raciocínio que comanda o artigo 4º da Resolução Conjunta nº 1/2014, assinada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e pelo Conselho de Combate a Discriminação. Este artigo determina que as pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas. Assim, desde 2014, órgãos consultivos ligados ao poder executivo federal estabeleceram que homens biológicos com identidade subjetiva feminina sejam encaminhados para presídios femininos.

As premissas subjacentes à elaboração desta norma são verdadeiras. Não são desconhecidos os dramas e sofrimentos das minorias sexuais em restrição de liberdade. A Resolução n.º 1/2014, com exceção do art. 4º, é um excelente documento e um avanço na proteção da comunidade LGBTT+ nas prisões. Entretanto, algo faltou. Buscando proteger as transmulheres nas prisões masculinas, não houve a ponderação sobre as consequências e riscos para um outro grupo. Este grupo é das mulheres presas, que receberiam estes homens biológicos em seu ambiente.

A Resolução Conjunta n.º 1/2014 passou praticamente despercebida. De fato, não houve a aplicação irrestrita ao seu artigo 4º. Juízes e promotores usualmente condicionavam a transferência de uma transmulher para a prisão feminina à comprovação de cirurgia de redesignação sexual, ou seja, a ilusória "mudança de sexo".

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Contra a resistência dos juízes, foi proposta pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 527 (ADPF 527), em junho de 2018, perante o Supremo Tribunal Federal. A ADPF 527, cujo Relator é o Ministro Luís Roberto Barroso, tem dois objetivos: a) afastar a necessidade de cirurgia e comprovação de tratamento hormonal para que transmulheres sejam transferidas para prisão de mulheres; b) expandir a Resolução n.º 1/2014 para permitir que travestis possam escolher serem também transferidos a um presídio feminino.

Em relação aos travestis, na realidade, existe precedente do próprio Ministro Barroso. No HC 152.291/SP, o Ministro determinou de ofício a transferência de dois travestis para uma prisão de mulheres, "compatível com as respectivas orientações sexuais". Sem dúvida tentando acertar, Sua Excelência errou. Baseando-se na Resolução nº 1/2014, errou ao extrapolar a própria norma, pois esta determina a criação de espaços de vivência especiais em presídios masculinos para abrigar os travestis. Errou ao vincular a ideia de orientação sexual à experiência travesti. E, mais gravemente, errou ao esquecer-se que, nos presídios femininos vivem mulheres cujas histórias de vidas e condições biológicas colocam-nas em condições de vulnerabilidades que precisam ser consideradas.

Este último erro, infelizmente, não é incomum. O fenômeno da invisibilidade da mulher presa é objeto de diversos trabalhos acadêmicos nacionais e internacionais. É rara a defesa da segurança e dignidade destas mulheres. No polêmico tema de transgêneros no cárcere, praticamente não há material literário considerando riscos e repercussões negativas às mulheres presas em face da ruptura da lógica da divisão por sexo na prisão. Parafraseando a escritora feminista Sheila Jeffreys, a mulher é o referencial ausente desta equação.

Portanto não surpreende que, na ADPF 527, a decisão interlocutória que permitiu a transferência de presas transexuais para presídios femininos não tenha ponderado, em suas vinte e duas páginas, sobre o interesse das mulheres presas. O cerne das intenções protetivas é o grupo dos transgêneros, uma proposição legítima. Esta lógica, aliás, também norteou a Procuradora-Geral da República na mesma ADPF 527, em cujo parecer opina que os supostos riscos à integridade física e à liberdade sexual das mulheres presas não podem impedir que transmulheres e travestis compartilhem com elas o mesmo espaço prisional.

A intenção é boa, a ideia é ruim. Os riscos às mulheres não são hipotéticos. Há um ano e meio me dedico a este assunto, e o resultado das investigações logo será publicado em um livro. Há muitos aspectos a serem considerados. Existem diferenças entre homens biológicos e mulheres biológicas que vão além do órgão sexual e do nível atual de testosterona. Independente de sua identidade de gênero, homens biológicos possuem mais força física que as mulheres; e também apresentam níveis de criminalidade violenta comprovadamente superiores aos femininos. Houve casos de estupro de mulheres por transmulheres em prisões estrangeiras. Estes são apenas alguns dentre diversos outros elementos que cercam a complexa questão e, infelizmente, não estão sendo considerados no atual debate.

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A ADPF 527 ainda pende de julgamento definitivo. Ainda é possível ajustar o leme em direção a um caminho de equilíbrio e justiça que considere a vulnerabilidade da mulher presa. Será uma grande oportunidade para o poder judiciário mostrar que é possível proteger e melhorar a qualidade de vida dos transgêneros na prisão sem violar a segurança e os direitos das mulheres. Ainda há tempo de corrigir um silogismo falho e transformar uma boa intenção em uma ideia justa.

*Tatiana A. de Andrade Dornelles, mestre em Criminologia, especialista em Segurança Pública, procuradora da República e autora da obra Transmulheres nos Presídios Femininos: o debate omitido sobre a mulher presa (em vias de publicação)

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