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Trabalho remoto. Regulamentá-lo ou não?

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Por Cristóvão Macedo Soares
Atualização:
Cristóvão Macedo Soares. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei 13.467/2017, introduzindo o capítulo II-A ao título II, da CLT, e acrescentando o inciso III, ao art. 62, do mesmo título, visou a regulamentar uma das espécies ou modalidades de trabalho remoto, o teletrabalho, definindo-o como o trabalho prestado preponderantemente fora do estabelecimento do empregador, com a utilização de tecnologia de informação e de comunicação, não confundível com o serviço externo tipificado na lei.

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Neste particular, a lei veio apenas disciplinar uma atividade laboral, extramuros do empregador, que, desde a redação original do art. 6º, da CLT, vinha se desenvolvendo na esteira dos avanços tecnológicos. A redação atual do referido dispositivo, alterado em 2011, já considerava os meios telemáticos e informatizados como um dos caminhos de integração à distância entre empregado e empregador.

Acontece que a difusão do teletrabalho e de outras modalidades do gênero trabalho remoto, tais como home office, trabalho nômade ou anywhere office, trabalho híbrido, etc., ao menos nos limites materiais das relações de emprego, estava circunscrita, em regra, a um perfil determinado de empregado, aquele naturalmente conectado ao mundo tecnológico e digital (millennials e geração Z), capaz de gerir com autonomia a sua jornada laboral, e às atividades remotas assim definidas por estratégia dos empregadores, voltadas exclusivamente para os resultados pretendidos, independentemente, também em regra, do controle de dias e horários trabalhados.

A pandemia, entretanto, revolucionou as relações de trabalho, transformando, da noite para o dia, o que era exceção em regra.

Se o desenvolvimento tecnológico dinamizou o Direito do Trabalho, o Novo Coronavírus nos faz repensar a aplicação da lei a cada dia. E nessa senda de pensamentos fugazes e voláteis, como é normal, o trabalho remoto encontra lugar de destaque.

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O entendimento mais frequente é o de que urge uma nova regulamentação, havendo, de fato, quase uma quinzena de projetos de lei em tramitação legislativa, com esse propósito. Tenho cá minhas dúvidas se é o caso e, principalmente, se é o momento.

É preciso reconhecer que a lei existente, abarcando apenas o teletrabalho no contrato de emprego, espécie, repita-se, do trabalho remoto, teve a sua aplicação em grande parte prejudicada em razão das restrições de convívio causadas pelo vírus.

O art. 75-C, § 1º, da CLT, dispõe que a alteração do regime presencial para o teletrabalho exige mútuo acordo entre as partes, devendo ser formalizado por aditivo contratual. A bilateralidade do ajuste pressupõe, necessariamente, a alternativa do empregado de optar pela permanência no regime presencial, harmonizando-se com a orientação original do teletrabalho, antes da pandemia, dirigida, repito, a um fim estratégico e a determinados perfis de empregados e atividades.

As adequações forçadas ao home office se acomodaram, pelo decurso do tempo, às estruturas empresariais. O home office, enquadrando-se ou não como teletrabalho, passou, então, a ter um fim primordial ou exclusivo de economia, no sentido de permitir que os empregadores, combalidos pela crise sanitária, cortassem custos significativos com instalações físicas, transportes e benefícios que estavam atrelados ao modelo original de trabalho.

Desde que o interesse de uma das partes no teletrabalho é meramente econômico e sendo tal parte o empregador, não há mais bilateralidade possível (ou autêntica), desaparecendo a possibilidade de escolha do empregado por um regime, o presencial, que a empresa, legitimamente, deixou de adotar ou relegou a um nível residual de atividades. Assim, o termo aditivo da lei passa a configurar ato puramente formal, divorciado da realidade e, portanto, sem consistência jurídica.

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Ademais, a possibilidade de transferência do empregado para o regime presencial por ato unilateral do empregador, estipulada no § 2º, do art. 75-C, da CLT, passa a ser, no mínimo, duvidosa, se a contratação se deu para a prestação específica do trabalho remoto, desvinculada de circunstâncias especiais ou transitórias, previstas no contrato, em razão da pandemia. Nesse caso, ressalvando ajustes celebrados com os chamados hiper suficientes, nem o consentimento formal do empregado eximirá completamente o empregador de risco, pelo teor de subjetividade que permeará avaliações de eventuais prejuízos resultantes da alteração contratual (art. 468, CLT).

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A exclusão do teletrabalhador do regime normal de duração do trabalho (art. 62, III, CLT) também foi afetada pelas transformações provenientes da pandemia. O conceito original do teletrabalho, pressupondo flexibilidade no cumprimento da jornada, por meio de uma afinada combinação do perfil do empregado com a natureza da atividade, justifica, ao meu juízo, o mesmo tratamento que a lei já oferecia ao empregado gestor e ao prestador de serviço externo. Não se trata aqui de incompatibilidade com a fiscalização da jornada, mas de desinteresse mútuo pelo sistema de controle, em privilégio da entrega de um resultado ajustado sob padrões de razoabilidade de tempo, sem fixação de horário e, até mesmo, de dias de trabalho. A regra do genuíno trabalho remoto é a flexibilidade.

Todavia, à medida em que o home office, por motivo de força maior, se tornou corriqueiro, para qualquer atividade, a coisa mudou de figura, porquanto a mera transferência do local de trabalho, do estabelecimento empresarial ao domicílio residencial, para o exercício da mesma atividade sempre submetida à fiscalização de horário, uma vez assentada ao regime de tempo à disposição fixado contratualmente, e que continuará a ser prestada, igualmente, por outros empregados que permanecerão em regime presencial, registrando os seus pontos,  a ausência de fiscalização e fixação da jornada, para o trabalhador remoto, adquire, nessa hipótese, um potencial nocivo, de descontrole ao invés de flexibilidade, em detrimento do empregado, por melhor que seja a intenção da empresa.

As observações até aqui traçadas estariam a sugerir uma inequívoca e pronta nova regulamentação do trabalho remoto.

Sucede que, muito além das questões objetivas acima destacadas, há um oceano de situações novas aflorando a cada momento, inclusive por força da crise econômica, que estão longe de se encaixarem nos modelos propostos, sendo certo que empregadores e empregados ainda não conseguem formar convicções acerca do regime de trabalho que melhor se adequa aos seus respectivos interesses.

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Pesquisas de mercado, nacionais e internacionais, apresentam dados surpreendentes, indicando mais incertezas do que definições.

Notem que, apesar de uma crescente preocupação com o excesso de trabalho submetido ao trabalhador remoto, seja pelo acúmulo de demandas, seja pela dificuldade de desconexão inerente ao home office, recente pesquisa realizada pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pela Fundação Instituto de Administração (FIA), publicada no Estadão, em 5/09/21, concluiu que 78% dos trabalhadores têm a intenção de continuar em home office após a pandemia, 81% dos entrevistados afirmaram que a produtividade é maior ou igual à da atividade presencial e pelo menos 50% deles admitiram cumprir uma carga horária semanal inferior a 44 horas.

Por outro lado, levantamento apresentado pela Dra. Julia de Castro Tavares Braga, Mestre em Direito do Trabalho e Previdenciário, graduada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em palestra realizada, no mês de julho/21, perante o comitê trabalhista do SINSA/CESA, trouxe o surpreendente dado de que as Big Techs (Facebook, Google, Apple e Uber), de onde se presume maior e inata intimidade com o trabalho remoto digital, pretendem retomar majoritariamente o trabalho presencial ou estabelecer um modelo híbrido, com prevalência presencial.

Esse cenário é um consistente indicativo da necessidade de maior maturação do mercado, em face do que será, afinal, o novo normal, antes de se positivar uma nova regulamentação.

Dentre os projetos de lei em tramitação no Congresso, versando sobre trabalho remoto, o de nº 5581/2020 é o mais minucioso, adentrando em questões de privacidade, treinamento, etiqueta digital, identificando modalidades distintas de trabalhador remoto e buscando detalhar aspectos relativos à preservação da sua saúde física e mental, além de propor a modificação parcial dos dispositivos da CLT inseridos no capítulo dedicado ao teletrabalho.

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Ainda assim, não me parece próximo de esgotar as questões pertinentes ao tema e de solucionar as suas principais divergências, sendo imprescindível, para tanto, a experiência empírica num quadro mais estável de normalidade, que em algum momento chegará. É inegável, v. g., que a incidência significativa no home office de distúrbios e síndromes emocionais tem forte relação com o quadro de pandemia, que induz os medos relacionados à morte, à possibilidade de perda do emprego, à solidão...., a despeito das dificuldades ínsitas de acomodação a um regime de trabalho remoto não programado.

Embora este seja um tema distinto, digno de artigo próprio, e sem entrar no mérito dos inócuos (uma vez inconclusivos e prejudiciais à pacificação) debates sobre a natureza jurídica do trabalho por demanda, mediante plataformas digitais, penso, também, fazendo uma breve digressão, que a regulamentação do trabalho remoto, prestado por meios telemáticos,  deverá encontrar um ponto de intersecção com essa outra matéria, lembrando que os direitos fundamentais estipulados no art. 7º  da Constituição Federal são direcionados aos trabalhadores de modo geral.

Enfim, serenando as minhas dúvidas iniciais, considero prematuras e incompletas as propostas existentes de nova regulamentação do trabalho remoto. Sem embargo, arrisco algumas conclusões objetivas, sobre a aplicação da lei atual (artigos 6º e parágrafo único, 62º, III e 75-A e seguintes, da CLT) e quanto a possíveis caminhos para um futuro próximo, em sintonia com o que foi acima explanado:

- O ajuste bilateral de mudança para o teletrabalho pressupõe a possibilidade real da permanência em regime presencial, assim como o ato unilateral de transferência para o estabelecimento da empresa dependerá da modalidade de regime de trabalho originariamente contratado. É razoável, contudo, enquanto perdurarem restrições oriundas da pandemia, que sejam flexibilizadas as exigências e interpretações da lei e dos contratos, em relação ao trabalho remoto. 

- O art. 75-B, da CLT, contempla o regime híbrido de trabalho, de acordo com orientação do próprio TST, desde que o teletrabalho seja o regime preponderante.

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-  As alterações da CLT, através da Lei 13.467/17, com a introdução do teletrabalho, foram concebidas para perfis específicos de atividades e de empregados, adequados para regimes de trabalho remoto, baseados em comunicação tecnológica, absolutamente flexíveis no tocante a horário e voltados para a entrega de resultados, características essas cuja observância foi atropelada pelas consequências do vírus nas relações de trabalho. 

- Para o futuro, sob o aspecto da retenção de talentos, as empresas deverão ter um olhar especial para o teletrabalhador típico, aquele enquadrado nas condições supra, adaptado ao trabalho remoto telemático, em home office ou anywhere office, que tenderá a buscar opções de mercado que lhe permitam o exercício das suas funções de qualquer lugar, dentro ou fora do Brasil, agregando flexibilidade, autonomia e qualidade de vida.

- O art. 62, III, da CLT deve ser visto e aplicado com parcimônia. Considero-o plenamente justificado, para o que venho qualificando como trabalhador remoto típico (esteja ele em teletrabalho, home office ou anywhere office), podendo, todavia, gerar iniquidades e tratamento não isonômico, se aplicado indistintamente pelo empregador, exclusivamente para o corte de custos, por mera transferência de locação, empresarial para residencial, permanecendo o empregado submetido às mesmíssimas atividades, que sempre estiveram relacionadas ao tempo à disposição contratualmente fixado, sujeito a controle de ponto.

De qualquer modo, o debate a respeito do tempo de trabalho, principalmente em home office, trouxe à tona o tema da DESCONEXÃO, que, na verdade, é mais relevante do que o controle de horário em si. A fiscalização de jornada, quando cabível, é apenas um meio, destinado, precipuamente, não para o pagamento de horas extraordinárias, algo a ser evitado, sob as ressalvas da lei, mas sim para garantir ao trabalhador o seu período diário, biologicamente necessário, de descanso e de convívio social e familiar. A desconexão deve ser tida como um direito fundamental, diretamente vinculado ao art. 7º, XIII, da CF, a ser sistematicamente estimulada pelo empregador ou pelo tomador de serviços, por qualquer meio que seja, tanto nas atividades remotas - mesmo as não submetidas a controle de jornada - quanto no trabalho presencial.

O art. 62, da CLT, ao excluir, justificadamente, determinadas atividades do regime normal de duração do trabalho estabelecido no capítulo II, título II, do texto consolidado, isentando os empregados enquadrados naquelas atividades de uma jornada fixa e controlada de trabalho, não retira desses trabalhadores, em interpretação conforme a Constituição Federal, a garantia fundamental à desconexão, observados os parâmetros existentes e razoáveis de tempo de trabalho e tempo de descanso, valendo esclarecer e frisar que o estímulo à desconexão, por meios objetivos, não é sinônimo de controle de jornada.

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- Na esteira do ponto anterior, entendo que a lei vigente, devidamente interpretada, já exige do empregador, no trabalho remoto, extrema responsabilidade quanto à saúde e segurança do trabalhador, muito além de submeter ao empregado termo de compromisso formal, para o cumprimento de orientações padronizadas de segurança. Tal responsabilidade, a ser integrada aos PCMSOS, PPRAS e CIPAS, inclui, sistematicamente, cuidados ergonômicos, cuidados com a prevenção de doenças resultantes do trabalho de digitação e contínuo contato visual com a tela de computadores ou notebooks (a ciência vem identificando novos espectros de doenças dessa natureza) e acompanhamento rigoroso da saúde emocional do trabalhador. O ideal é que os contratos ou termos aditivos, a par de estipularem, segundo determinado na lei, as condições de concessão de infraestrutura e de ferramentas para o trabalho remoto, prescrevam rotinas de segurança e saúde do trabalho, entre as quais a possibilidade de visitações, previamente ajustadas, no ambiente de trabalho em home office e a disponibilização de atendimentos de ordem psíquica, por meio de profissionais qualificados.

No mais, ante o caráter dinâmico da matéria e das constantes transformações mencionadas, decorrentes das mais diversas razões, me reservo a voltar ao tema, quiçá com outras conclusões.

*Cristóvão Macedo Soares, sócio do Bosisio Advogados

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