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Testamento por meios digitais e a decisão do STJ que pode validar

Por Átila Melo Silva
Atualização:
Átila Melo Silva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em tempos sombrios de pandemia decretada pelo COVID 19, nos quais somente no Brasil mais de cento e sessenta mil pessoas perderam a vida, um assunto ganhou força, e voltou a ser objeto de procura pela população, a elaboração de testamento. Ora, é natural que as pessoas busquem meios legítimos de pronunciar suas disposições de última vontade, principalmente relacionadas ao destino de seus bens materiais. Para que em momento posterior sejam cumpridas perante um juiz, seguindo os trâmites da legislação vigente.

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O Código Civil autoriza que pessoas maiores de dezoito anos façam testamentos, os quais, nos termos dos artigos 1.864 a 1.868, podem ser públicos e/ou cerrado, feitos perante o tabelião do cartório de notas, e ainda o particular que pode ser feito pela própria pessoa de próprio punho ou por processo mecânico.

Iremos focar nessa breve analise no testamento particular, o qual segundo o art. 1.876, §1º do Código Civil, pode ser escrito de próprio punho, sendo necessário, para ter validade, que seja lido e assinado por quem o escreveu na presença de pelo menos três testemunhas, que também devem subscrever.

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Importante lembrar que as formalidades legais exigidas para a validade legal do testamento, em quaisquer de suas formas, foram pensadas e estabelecidas para se proteger o declarante, buscando evitar fraudes e assegurar que sua vontade seja efetivamente cumprida.

Aqui começa a enorme disparidade entre realidade e norma vigente, um hiato profundo entre o avanço tecnológico sem precedentes, o qual vivemos hoje, e normas obsoletas que não foram capazes de prever novas formas, e modos de comunicação e expressão da vontade. Para contextualizar basta dizer que o anteprojeto que originou o atual código civil, publicado no ano de 2002, é de 1975, ou seja, somente entre a data de sua proposição até sua publicação já haviam se passado longos e inimagináveis vinte e sete anos.

A rápida evolução da tecnologia levanta uma série de questões legais e éticas que são debatidas no século XXI. Devido à natureza em constante evolução da tecnologia, novos debates estão constantemente surgindo para desafiar tanto os legisladores quanto os profissionais do direito.

Nesse contexto, considerando que o código civil, foi pensado e elaborado numa realidade que não existe mais, cumpre fazer uma provocação, uma pessoa que declare sua última vontade, no tocante a divisão de seus bens, após sua morte, através de mensagem escrita, de voz ou vídeo encaminhada por aplicativo de mensagens ou por mídias sociais, teria validade jurídica e poderia ser reconhecido e executado no Poder Judiciário?

Pensamos que sim. Isso porque, a dinâmica da vida atual, e as tecnologias incorporadas ao nosso cotidiano, não podem ser ignoradas pelo direito ou mesmo pelos julgadores, especialmente quando se trata de veículos de comunicação pujantes como o aplicativo WhatsApp, que em 02/2020, alcançou a marca de dois bilhões de usuários por todo o mundo.

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Com a tecnologia atual, qualquer pessoa é capaz de conversar, ou até mesmo ligar por vídeo para alguém que esteja a milhares de quilômetros de distância. Uma das principais vantagens da tecnologia de comunicação é o fato de ser possível alcançar outros fornecedores, clientes, amigos ou até mesmo parentes em questão de segundos. Podemos transmitir nossos pontos de vista de forma sucinta sem distorções e somos capazes de fazê-los entender o mesmo.

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Não se pode negar que, a tecnologia alterou o estilo de vida de todos e continua a fazer mudanças também. Na verdade, não há nenhum aspecto na vida de uma pessoa que a tecnologia não tenha tocado. No entanto, há uma área onde a tecnologia fez um efeito significativamente profundo, na comunicação.

Com todos os aparelhos eletrônicos disponíveis hoje em dia, uma pessoa ficará perturbada procurando um pretexto para não se comunicar. Não ter um telefone ou uma conexão com a internet é na verdade uma desculpa. A acessibilidade é especialmente útil para atividades relacionadas ao trabalho. Com tecnologia de fácil acesso nos permite realizar muitas coisas no trabalho enquanto estamos em casa de pijama.

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Diante deste cenário atual, o qual nos possibilita infinitas formas de expressar nossa vontade e opinião, que evidentemente não se limitam a um documento com assinatura de próprio punho, é impensável negar as pessoas o direito de fazer uso destas tecnologias para os fins mais variados e lícitos possíveis, inclusive para declarações de ultima vontade.

Tokens, senhas, logins, usuários, palavras chaves são mecanismos que utilizamos diariamente para confirmar nossa identidade e praticar os mais diversos atos da vida civil, tais como realizar operações bancárias, compra e venda de produtos e serviços, acessar sites e conteúdo na internet, interagir com amigos, familiares e colegas em redes sociais, dentre outras tantas atividades. Na realidade, atualmente impulsionada pela tecnologia é improvável ou até arcaico que alguém manifeste sua vontade por meio de um documento escrito, impresso e assinado.

O ponto central é que o Código Civil, ao regulamentar a possibilidade de elaboração de testamento, teve como norte o lapso de tempo entre 1975 e 2002, que compreendem o ano em que foi proposto o projeto originário até a data de sua publicação. Neste período, a tecnologia era completamente diferente e não havia as ferramentas que hoje temos à disposição para expressar nossa vontade.

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Entretanto, o Poder Judiciário já reconhece valor jurídico em declarações de vontade manifestadas por meio de aplicativos de mensagens (escrita, vídeo, imagem ou voz), mídias sociais, seja para demonstrar a contratação de produtos e serviços, ou como elemento de prova para confirmar ou desmentir a concretização de um fato ou negócio jurídico. Também na esfera criminal as manifestações de vontade, ou fatos e atos devidamente registrados, são amplamente aceitas para condenar ou absolver pessoas de crimes imputados.

Desta forma, considerando a tecnologia que temos a disposição, é completamente factível e possível que alguém expresse suas declarações de ultima vontade utilizando-se dos mais variados modos de comunicação hoje a nossa disposição, seja por voz, por escrita, por vídeo, desde que seja efetivamente a vontade real, livre de coação ou ameaças, não existem motivos para desconsiderar, afinal o objetivo da lei ao estabelecer exigência é justamente assegurar que a vontade seja cumprida e executada conforme o seu declarante expõe, observados é claro os demais requisitos legais com relação a sucessão.

Nesse sentido, importante destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1.633.254/MG deu mais um passo importante ao reconhecer a validade de um testamento particular que não havia sido assinado pelo testador, ao justificar o voto a Ministra NANCY ANDRIGHI, tece importante e relevantes considerações sobre se perquirir a vontade real do testador, relativizando se for o caso exigências formais exacerbadas, que não fazem o menor sentido na realidade que vivemos.

Concluímos no sentido de que, mesmo com o atraso legislativo, o direito e principalmente o Poder Judiciário, não podem desconsiderar os expressivos avançados tecnológicos que nos possibilitam uma infinidade de meios para expressar nossa vontade, afinal ignorar tecnologias emergentes não é uma opção na sociedade de informação na qual vivemos.

*Átila Melo Silva, advogado atuante em direito digital e família do Manna, Melo & Brito

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