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Testagem de empregados no contexto da covid-19 e a LGPD

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Por Aline Fidelis , Cristiane Manzueto e Rodrigo Leal
Atualização:

Aline Fidelis, Cristiane Manzueto e Rodrigo Leal. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O atual cenário trazido pela covid-19 está fazendo com que as empresas se adaptem às dificuldades surgidas neste momento de crise. Dentre diversas ações que vêm sendo tomadas, destaca-se a instituição do home office, que alterou drasticamente a rotina de muitos empregados e empregadores. Entretanto, com o passar do tempo, o retorno às atividades laborais presenciais está cada vez mais próximo, como já vem ocorrendo largamente na China e na Europa, trazendo consigo uma série de questionamentos acerca das medidas necessárias para elaborar planos de contingenciamento e, consequentemente, garantir uma volta segura à rotina - em todos os aspectos.

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As ações que visam proporcionar um ambiente mais seguro aos empregados, em regra, estão atreladas à coleta de dados pessoais, principalmente os dados relacionados à saúde - chamados de dados pessoais sensíveis pela Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ou LGPD). Cumpre ressaltar que uma medida que vem recebendo amplo destaque é a possibilidade de os empregadores submeterem os empregados a testes para averiguar a contaminação pela covid-19, além de recolherem diversas informações de saúde do empregado e, especialmente, daqueles com quem ele convive ou conviveu durante o isolamento em casa. No entanto, essa coleta de dados pode gerar em uma série de consequências para o empregador, principalmente em relação ao tratamento e uso inadequados dos dados obtidos.

Para melhor entender essa questão, é importante se socorrer das diretrizes que já vêm sendo adotadas internacionalmente a respeito dessa matéria, tendo em vista que diversos países já estão vivendo o desconfinamento e se encontram na iminência do retorno às atividades presenciais. A Europa, como pioneira na instituição de normas e diretrizes acerca do tratamento de dados, vive a necessidade de vinculação de medidas de segurança ao tratamento adequado dos possíveis dados obtidos para tal. Destaca-se, também, o panorama norte-americano quanto ao tema.

A General Data Protection Regulation (GDPR), em vigor desde 2018, é o regulamento europeu que dispõe sobre a privacidade e proteção de dados pessoais dos cidadãos da União Europeia, fornecendo robustas normas e princípios sobre os aspectos dos dados pessoais e seus respectivos tratamentos. Em relação aos dados de saúde, nota-se uma proteção redobrada do regulamento ante a sua significativa sensibilidade para o titular, de modo que há condições e restrições adicionais vinculadas a eles. A GDPR define os dados pessoais relacionados a saúde como aqueles que tratam da saúde física, ou mental, de uma pessoa natural, e revelam informações sobre o seu estado de saúde. O escopo da proteção é amplo e, definitivamente, dados sobre resultados de exames, que seriam realizados pelos empregadores quando do retorno às atividades presenciais, se enquadram nesta modalidade de dados.

A regra geral estabelecida no Art. 9 da GDPR é a proibição do tratamento de dados relacionados à saúde, salvo na ocorrência das 10 situações específicas em que se permite o tratamento desse tipo de informação, como nas hipóteses de: (a) existência de explícito consentimento do titular; (b) necessidade de cumprimento de obrigações e exercício de direitos relacionados à legislação trabalhista, segurança e proteção social; (c) proteção dos interesses vitais de cidadãos incapazes, legalmente ou fisicamente, de consentir; (d) tratamento realizado por organizações sem lucrativos em relação aos seus membros sob os moldes previstos; (e) dados pessoais já manifestamente públicos pelo seu titular; (f) tratamento vinculado a um direito em processo judicial; (g) interesse público importante; (h) efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação de capacidade do empregado; (i) interesse público no domínio da saúde pública, como proteção de fronteiras ou demais medidas de segurança; e (j) fins de arquivo de interesse público, cientifico ou histórico.

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Além disso, permite-se que os Estados-Membros mantenham ou estabeleçam novas condições, incluindo limitações, no que diz respeito ao tratamento de dados relativos à saúde, desde que em conformidade como as garantias e princípios estabelecidos pela GDPR.

Neste momento de retomada às atividades presenciais, cada país, através de sua autoridade dados pessoais e legislação nacional, está promovendo diretrizes e recomendando medidas a serem tomadas.

A Espanha, por exemplo, determinou a possibilidade de tomada de medidas de monitoramento de dados de saúde e seu respectivo tratamento, com fulcro em duas bases legais: a Lei de Prevenção aos Risco Laborais[1], que institui como obrigação legal o zelo pela segurança e saúde dos trabalhadores, e os artigos 6.1.c) e 9.2.b) da GDPR, que determinam como lícito o tratamento de dados necessários para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito. Na hipótese de coleta de dados a partir de procedimentos mais invasivos, como a medição de temperatura e realização de testes para covid-19, o empregador deve sempre buscar o consentimento do empregado, sob os moldes do artigo 22 da Lei de Prevenção aos Riscos Laborais e 9.2.a) da GDPR.

Na Alemanha[2], por sua vez, a Lei Federal de Proteção de Dados alemã[3], em consonância com a GDPR, permite o processamento de dados de saúde com o intuito de prevenir ou conter a dissiminação do vírus entre empregados. Entretanto, a divulgação dessas informações deve ser realizada com cuidado, apenas sendo cabível para adoção de medidas preventivas em relação àqueles que tiveram contato com o indivíduo contaminado. Ademais, em regra, o empregador não pode submeter o empregado a testes, salvo havendo extrema necessidade, o que deve ser avaliado no caso concreto e em conformidade com as diretrizes gerais da GDPR.

Em paralelo, vale destacar, também, o panorama dos Estados Unidos que, apesar de não ter uma legislação de proteção de dados como a GDPR, é um país que exerce grande influência mundialmente.  No país, a Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego dos EUA, agência que administra leis civis contra a discriminação no local de trabalho, anunciou[4] que os empregadores podem testar os empregados no retorno das atividades presenciais. Tal determinação advém da concepção da covid-19 como direta ameaça a todos, mas o princípio de vedação à discriminação deve ser realçado nesse período.

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No mundo já se discute, inclusive, sobre passaportes de imunidade, que seriam exigidos por determinados países para ingresso em suas fronteiras[5]. Apenas aqueles que demonstrassem ou estarem vacinados ou já terem contraído o vírus - o que aparentemente lhes garante imunidade - poderiam ultrapassar as barreiras imigratórias. Contudo, é imprescindível se pensar sobre os riscos à privacidade oriundos do trânsito de um dado de saúde, de natureza sensível, por diversas autoridades ao redor do mundo.

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Finalmente, em relação ao Brasil, é imprescindível que se faça um paralelo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ainda que ela não esteja em vigor. Não obstante ainda estar em vacatio legis, a LGPD serviu expressamente como base interpretativa para o julgamento conjunto pelo plenário do Supremo Tribunal Federal[6] acerca de medidas cautelares em diversas ADIs, em 07 de maio de 2020, que procuram declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 954/2020, mesmo diante finalidade emergencial nela declarada em função da pandemia da covid-19. As medidas cautelares concedidas pela Ministra Rosa Weber, relatora das ADIs, suspendiam a eficácia dessa MP, o que foi referendado por quase a totalidade dos ministros da corte. O reconhecimento que o STF deu à questão fez emergir, para boa parte da doutrina[7], um novo direito constitucional autônomo relativo à proteção de dados pessoais, inclusive de natureza subjetiva para os seus titulares, independentemente da natureza do dado (seja íntimo ou não), que já é aplicável e exigível, independentemente da vigência ou não da LGPD. Se antes a privacidade, os direitos humanos e, especialmente, os direitos da personalidade, fartamente reconhecidos na legislação brasileira, inclusive infraconstitucional, já davam conta de proteger os dados pessoais e em embasar diversas demandas, agora essa realidade será de certo intensificada.

Como exemplo do evidenciado acima, as suas disposições já servem para embasar inúmeras investigações e inquéritos conduzidos pelas autoridades, especialmente pelas Secretarias e Órgãos de Proteção do Consumidor - que se apoiam, sobretudo, no Código de Defesa do Consumidor -, bem como pelo Ministério Público - o que, de certo, incluiria o do Trabalho. O Procon de São Paulo notificou recentemente uma empresa de tecnologia solicitando, expressamente, que ela demonstrasse a sua adequação à LGPD[8]. É, portanto, altamente aconselhável não só pelo aspecto de imagem, governança, ética e boas práticas, que as empresas já enderecem suas práticas de acordo com a normativa da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, mas também por questões de mitigação de riscos jurídicos.

Feita essa digressão, a Lei 13.709/2018 apresenta diretrizes concretas em relação aos dados sobre a saúde, o que, logicamente, incluiria a dos empregados. A previsão legal, disposta no art. 11, determina que esses dados só podem ser tratados nas seguintes hipóteses: mediante consentimento expresso do titular ou sem o seu consentimento. Em relação à segunda hipótese, apenas é permitido o tratamento sem a autorização prévia do seu titular se for indispensável para: cumprimento de obrigação legal ou regulatória; execução de políticas públicas; realização de pesquisas; exercício regular de direitos; garantia da tutela da saúde; proteger a vida ou incolumidade do titular ou de terceiro; e garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular.

Ademais, a Lei 13.709/2018 prestigia o respeito à privacidade, a inviolabilidade da intimidade, assim como a dignidade, que foram tomados como pilares básicos para construção da legislação, mas que são, também, princípios que regem as relações de trabalho.

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Nesse sentido, destaca-se que a testagem para covid-19 pelos empregadores pode ser respaldada em três bases legais da LGPD: o consentimento do titular, o cumprimento de obrigação legal ou regulatória ou, ainda, para a proteção da vida de terceiro, no caso os terceiros seriam as demais pessoas que venham a conviver com o empregado testado.

No tocante ao consentimento, este deve ser livre, informado, inequívoco, específico e destacado, de modo a garantir que a coleta de informações e os sucessivos tratamentos sejam devidamente autorizados pelo titular. Por outro lado, há a obrigação legal de propiciar um ambiente de trabalho seguro e saudável ganha força e constitui uma importante base legal. Assim, a realização de testes seria um meio de zelar pela saúde coletiva através de um procedimento mais rápido e, em tese, eficiente.

Vale citar que a Lei 13.979/2020 obrigou, em seus artigos 5º e 6º, §1º, que haja o compartilhamento de informações sobre pessoas infectadas ou com suspeitas de infecção, por qualquer pessoa jurídica de direito privado com órgãos públicos e entidades da administração pública de todos os entes federativos. Nesse caso, o empregador só teria a obrigação se houvesse de fato a suspeita ou mesmo a confirmação. Contudo, o que se procura desenhar nesse artigo é a testagem preventiva, antes mesmo de qualquer potencial de contaminação dos empregados. Uma vez feita essa constatação, a disposição legal ora mencionada não serviria como justificativa legal, à luz da LGPD, para testagem ou realização de questionários pelos empregadores, por ocasião do retorno ao trabalho presencial.

Para além das bases legais, o empregador deve sempre ter em mente a necessidade de agir em conformidade com os princípios que regem as relações de trabalho e, também, aos dispostos na LGPD, os quais devem nortear todo o processo de coleta e tratamento dos dados. Reitera-se, portanto, que a coleta dos dados de testes deve ser feita de forma transparente e o titular deve estar ciente sobre como se dará o tratamento dos dados e as razões do empregador para fazê-lo. Ademais, faz-se essencial garantir a segurança da coleta e tratamento, a partir do suporte constante de profissionais de saúde e adoção de medidas de proteção aos dados, de modo a evitar que terceiros não autorizados tenham acesso a eles e evitar qualquer tipo de dano. Além disso, os dados coletados devem ser utilizados para a finalidade informada ao titular, não podendo, assim, ultrapassar os propósitos específicos de seu tratamento. Deve-se, também, zelar por um ambiente de trabalho seguro, sendo vedada a discriminação a partir da obtenção de dados sensíveis relacionados à saúde do titular. Finalmente, essas informações devem ser propriamente descartadas ao cumprirem seu propósito.

Importante ressaltar que, antes de optar pela testagem, é recomendável que o empregador busque medidas menos invasivas, como a disseminação de medidas de conscientização sobre a doença, orientando os seus empregados sobre meio de prevenção do vírus. Vale observar, também, que os empregadores devem garantir as adaptações necessárias ao ambiente de trabalho, como a disponibilização dos equipamentos de proteção individuais, produtos de higienização e, até mesmo, a implementação de sistema de rodízios, pois são responsáveis por fornecer um meio ambiente de trabalho saudável aos seus empregados.

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E, diante de tamanha responsabilidade, ainda mais potencializada em tempos de covid-19, caso o empregador opte pela realização de testes, deve garantir que os testes sejam confiáveis e precisos, sempre avaliando a incidência de falsos-positivo/negativo. Ademais, para assegurar a eficiência deste método, faz-se necessária a realização de exames periodicamente, pois, a qualquer momento, o empregado pode vir a se contaminar. Consequentemente, é necessário que o empregador também tenha em mente essas circunstâncias e conte com o auxílio de profissionais de saúde para pensar em estratégias seguras de mitigação dos riscos.

O momento exige muito cuidado e preparação, pois envolve a adoção de medidas que podem apresentar significativos impactos aos empregados e à sociedade em geral. Visto isso, é altamente recomendável que o empregador esteja sempre alinhado com os ditames da LGPD para garantir a proteção aos dados e direitos de seus empregados. Para isso, faz-se essencial a observância das bases legais e princípios norteadores no tratamento dos dados pessoais e das relações de trabalho, especialmente no que tange aos dados pessoais sensíveis.

*Aline Fidelis, Cristiane Manzueto e Rodrigo Leal são, respectivamente, sócia da área Trabalhista, counsel e associado da área de Propriedade Intelectual do Tauil & Chequer Advogados

[1] https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-24292

[2] https://www.simmonssimmons.com/en/publications/ck7bnzy9c0rdu0916ycsnlibx/coronavirus-covid-19---employment-issues-in-germany

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[3] https://germanlawarchive.iuscomp.org/wp-content/uploads/2014/03/BDSG.pdf

[4] https://www.ehstoday.com/covid19/article/21130356/eeoc-allows-employers-to-test-workers-for-covid19

[5] https://iapp.org/news/a/notes-from-the-iapp-europe-managing-director-15-may-2020/

[6] portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442902&ori=1

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/decisao-historica-do-stf-reconhece-direito-fundamental-a-protecao-de-dados-pessoais-10052020

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[8] https://www.procon.sp.gov.br/notificacao-tik-tok/

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