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Tecnologia no sistema de Justiça: uma nova onda de renovação

Por Renata Gil e Rodrigo Fux
Atualização:
Renata Gil e Rodrigo Fux. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A pandemia de Covid-19 atingiu com força a população em 2020. De um dia para outro, a dinâmica social foi radicalmente impactada pelas necessárias ações epidemiológicas de controle do vírus. No âmbito do funcionamento da Justiça, a suspensão do expediente ordinário dos Tribunais para cumprir a quarentena social teria provocado a parada total do Judiciário, tivesse a pandemia eclodido alguns anos antes. Graças ao uso de tecnologia, ele seguiu funcionando, conforme destacou-se na exposição feita durante reunião virtual preparatória do XIV Encontro Nacional do Poder Judiciário ocorrida em 25 de maio. Segundo dados apurados pela Associação de Magistrados do Brasil, desde o início da pandemia, foram proferidas 12 milhões de sentenças, e realizadas 166.911 audiências, sessões plenárias e reuniões em órgãos judiciais.

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As experiências com a tramitação eletrônica dos processos e a realização de audiências e sessões de julgamento virtuais, por meio de plataformas online, colocaram em destaque o potencial contributivo das ferramentas tecnológicas para dinamizar o funcionamento do sistema de tratamento de conflitos.

Os relatórios anuais de acompanhamento do programa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça têm mostrado um declínio na Taxa de Congestionamento Líquida e um aumento no Índice de Atendimento à Demanda (que reflete a capacidade das cortes em dar vazão ao volume de casos ingressados no sistema) como importantes reflexos da política de informatização do processo judicial.

Para além da tramitação eletrônica, a tecnologia fornece inúmeros aparatos para lidarmos com alguns dos gargalos que sufocam o sistema Judiciário pátrio. As plataformas virtuais de resolução de disputas (denominadas Online Dispute Resolution) cada vez mais conquistam novos adeptos com a virtude de estabelecer um canal de diálogo produtivo de baixíssimo custo para o tratamento à distância de conflito de interesses.

A inteligência artificial e os algoritmos inteligentes já são aplicados no Brasil em algumas atividades inerentes à tramitação processual. No STF, a ferramenta VICTOR é capaz de realizar a separação e classificação de peças processuais, com uma capacidade para executar em 5 segundos o que antes era feito por servidores em aproximadamente 30 minutos, e de apoiar a triagem de recursos com a identificação de temas jurídicos de maior recorrência. Outros Tribunais já investem em ferramentas para análise de prevenção (a exemplo do CNJ, TJRO e Tribunal Regional Federal da 3ª Região), de automação de atividades inerentes ao processo de execução fiscal (a exemplo dos robôs ELIS do TJPE e HORUS do TJDF), de classificação de petições iniciais por assunto (a exemplo da ferramenta TOTH do TJDF).

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O CNJ, no âmbito de suas atribuições, tem incentivado a inovação no processo judicial eletrônico com iniciativas como a criação do Laboratório de Inovação para o Processo Judicial em meio Eletrônico - Inova PJe, o Centro de Inteligência Artificial aplicada ao PJe e a plataforma SINAPSES, que cria um ambiente de desenvolvimento colaborativo de modelos de inteligência artificial para serem utilizado no PJe. No plano normativo, o CNJ acaba de aprovar a Resolução Nº 332 de 21 de agosto de 2020, que dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário.

Dentro dos Tribunais, as ferramentas tecnológicas aplicadas no processo judicial, no que impulsionam o ritmo de tramitação e vencem algumas arcaicas travas do processamento em autos físicos (como a impossibilidade de leitura simultânea por múltiplos usuários e a remessa física de autos), prestam valorosa contribuição para a efetivação do princípio da duração razoável do processo, plasmado da Constituição Federal da República.

Fora dos Tribunais, as plataformas online, no que encurtam distâncias e oferecem ao interessado mais uma alternativa dentre tantas outras à sua escolha (como Procons, Defensorias Públicas e Juizados Especiais), alargam o acesso à Justiça e contribuem para a desjudicialização, cumprindo a importante tarefa de pacificação social dos conflitos sem a desnecessária movimentação da máquina judiciária.

A tecnologia dá novos horizontes para a consecução do acesso à Justiça. Isso é indiscutível. Mas o seu uso no tratamento de conflitos, mercê do incentivo, requer um cuidado especial de modo que a utilização da tecnologia não suprima a interação humana presencial nos momentos processuais em que ela for recomendável para assegurar a fruição da garantia do contraditório participativo em toda a sua plenitude. As plataformas de videoconferência, por exemplo, podem ser utilizadas como ferramenta de facilitação - papel que bem cumpriram em tempos de pandemia -, mas não para eliminar audiências de instrução e sessões de julgamento realizadas presencialmente. Isto porque o ato de julgar é humano e o contato com as partes é fundamental e decisivo em determinadas situações. Não por outra razão, sentença deriva do latim sentire, que revela, conforme pontificado por Eduardo Couture, muito além do que o juiz sabe sobre o direito posto, mas sim o que ele sente com a instrução e resolução daquele conflito.

Pelo poderoso potencial que tem para maximizar a efetividade do acesso à Justiça, é compreensível o entusiasmo com o emprego de tecnologia no sistema de tratamento de conflitos, ainda mais nesse delicado momento experimentado pela sociedade. Mas essa pandemia não será uma realidade perene. A cura virá e o cotidiano do "novo normal" será a incessante busca pela virtude do meio. Portanto, precisamos aprimorar a realidade forense nessa utilização da tecnologia em vista da melhoria no futuro e não deixar em segundo plano o rico debate entre as instituições sobre a forma e limites da aplicação das ferramentas tecnológicas.

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O diálogo, ainda mais no nosso Estado Democrático de Direito, é fundamental e todos os órgãos essenciais à administração da Justiça devem trabalhar de braços dados para chegarem ao ponto ótimo de utilização da tecnologia.

A ressalva, sempre valiosa, é que todo remédio se prescreve na medida certa e se presta para salvar o paciente; jamais pode ser ministrado em excesso a ponto de envenená-lo. Homem e máquina deverão trabalhar juntos em prol de uma Justiça maior e melhor.

*Renata Gil é juíza de Direito do TJ/RJ e presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

*Rodrigo Fux é advogado, mestre e doutorando em direito processual (Uerj)

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