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Tancredo e Bolsonaro, um paralelo inusitado

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Por Carlos Barroso
Atualização:
Carlos Barroso. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Cada presidente tem os grotões que merece, em situação capaz de estremecer até Carlos Drummond de Andrade na cova

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Tancredo Neves tinha inteligência fina. Pouco herdada por políticos que o sucederam, mesmo em família. Primeiro ministro (1961/62), em breve gestação de nove meses de regime parlamentar no País, ele não era fácil.

Baixinho, empertigado, conservador. Certa vez, no interior de Minas, os jornalistas reclamaram de uma maratona exaustiva provocada por ele.

- Vocês se cansam porque não tomam vitamina P.

- P? Tem vitamina A, B, C, D, essa aí ninguém conhece, retrucou um repórter.

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- P, de poder!

Toda manhã, saía do Edifício Niemeyer, onde morava com Dona Risoleta, em passadas céleres até o Palácio da Liberdade, a 400 metros. Os aspones de sempre da política, mesmo os repórteres, costumavam ficar para trás.

- Espera o resto, governador!

- Resto, não. Restante! Resto é coisa ruim!

Inteligente, mas nada fácil. Em entrevista, uma repórter da Rádio Inconfidência, estatal, lhe fez uma pergunta mais contundente. Tancredo parou a entrevista: "Mas você é jornalista da minha rádio!?"

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De outra feita, ao me aproximar dele, então repórter de TV, atrasado e esbaforido, Tancredo sussurrou: "Lá vem o monstro!"

- Monstro? Por que, governador?

- Você só quer arrumar polêmica...

- Então, é um elogio profissional.

- Profissional é..., concluiu. Portanto, no "restante", estava me mandando para aquele lugar.

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Mesmo presente no palanque das diretas-já, Tancredo articulava, ao mesmo tempo, o roteiro à Presidência via colégio eleitoral. Reuniu-se, secretamente - como exemplo - em Belo Horizonte, com o czar da economia da ditadura, Delfim Netto, um "Posto Ipiranga" com resultados mais precisos que o atual.

E o paralelo com Bolsonaro que, mesmo entre as suas alas extremistas - civil, militar ou familiar - nunca foi definido como "inteligente"? Se o mundo do conhecimento e da cultura fica possivelmente na ponta da terra que deve ter como plana?

O rancor à imprensa do atual presidente também faz as intempéries de Tancredo parecer um afago. Bolsonaro já agrediu jornalistas, com insinuações sexuais; ameaçou dar "porrada" em repórter, entre otras cositas más, sempre com linguajar chulo de rodada de baralho entre milicianos.

Como, então, compará-los? É que os "grotões" de Tancredo Neves eram próximos, até "namoravam" com os de Bolsonaro, empregando, no caso, uma metáfora rasa ao gosto do atual mandatário.

Quando concorreu ao governo de Minas contra Eliseu Resende, Tancredo foi pressionado eleitoralmente pela dinheirama espalhada na campanha adversária. Eliseu havia largado o osso do abonado Ministério dos Transportes para a eleição. Tancredo o levou às cordas ao declarar que Eliseu era o candidato dos "grotões e dos burgos podres". Na lógica ferina do emedebista, os "grotões do interior, atrasados, onde a compra de votos ocorria com desenvoltura, era o único lugar em que o candidato da ditadura se sairia bem.

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Acertou o alvo. O desgaste sucessivo levou o ex-ministro a derrotas acachapantes na Capital e em grandes cidades. Os "grotões e os burgos podres" ficaram com Eliseu. Foi a primeira derrota expressiva da ditadura, prenunciando o seu fim.

Na eleição municipal, no final do ano passado, disputada sob o pandemônio da covid-19, Bolsonaro também ficou carimbado como um político de "grotões". E, para além dos enunciados por Tancredo, também virou dono dos "grotões mentais": não só a apologia da ignorância como virtude, do extremismo como tática política, do antiambientalismo, mas também a defesa anticientífica da cloroquina, a campanha contra a vacina e contra o distanciamento social.

Como se sabe, Celso Russomanno (São Paulo) e Marcelo Crivella (Rio de Janeiro) tiveram suas candidaturas derretidas com o apoio de Bolsonaro. Em Belo Horizonte, Bruno Engler se agarrou na gangorra bolsonarista até amargar derrota feia para Alexandre Kalil, crítico ácido do (des) programa do presidente para a pandemia. Capitão Wagner (Fortaleza) e Federal Eguchi (Belém) também se tornaram derrotas simbólicas.

Todos que colocaram "Bolsonaro" na cédula eleitoral, supondo atrair votos, não se elegeram, com exceção de quem já constava o nome na certidão de batismo (Carlos Bolsonaro). A expectativa, portanto, é que, em 2022, "Bolsonaro" será um nome tóxico para se carregar como adesivo de campanha.

De 63 candidatos que apoiou, no país, apenas um quarto se elegeu - a grande maioria em cidades pequenas. Portanto, no que se safou Bolsonaro na eleição foi em "grotões".

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Fica uma pergunta: os políticos do Centrão, que só se movem por "intéresses" (como pronunciava Tancredo), principalmente os que têm base eleitoral em centros urbanos, toparão carregar o peso-pesado do nome Bolsonaro em 2022? Os "grotões mentais" certamente têm adeptos, mesmo em grandes cidades. Porém, atrairão votos?

Até o ex-prefeito Gilberto Kassab, "capo" do PSD, partido que tem um ministro no governo - Fábio Faria, das Comunicações (embora seja bem mais do "partido" do Sílvio Santos, de quem é genro) - decretou nesta semana um provável insucesso eleitoral do presidente, com o surgimento em 2022 de "um antibolsonarismo, uma disposição antigoverno que não existiu na eleição passada", segundo ele.

E os "grotões" mentais? Em Minas, Ipatinga, antigo reduto petista, deu a Bolsonaro uma vitória festiva entre os fracassos eleitorais em municípios. Mas, lá, bem antes, o milionário Sebastião Quintão, dono de cartórios e fazendas, já havia chegado à Prefeitura com uma campanha feita em cima de um cavalo, com uma bíblia na mão. Portanto, já era um bolsonarista pré-Bolsonaro. O prefeito atual, em sintonia com o chefe de Brasília, colocou até o Diário Oficial a serviço do ineficaz e perigoso Kit-Covid. A CPI da Covid no Senado tende a agravar mais as críticas ao atraso da aquisição de vacinas - a oferta da Pfizer foi escamoteada pelo governo em julho de 2020 e a Coronavac virou "vachina", rebentando a celeridade do programa de imunização.

Também a atuação de bolsonaristas anticientíficos e terraplanistas deverá cair no colo eleitoral do presidente. Em Nova Lima, cidade de mineração, em Minas, o prefeito João Marcelo, conhecido como "Papai Noel Mirim", teve de demitir o médico Rafael Guerra, secretário pró-cloroquina.

Itabira, com a honraria de ser o berço do Poeta Carlos Drummond de Andrade, teve um caso até mais singular, protagonizado pelo vice-prefeito Marco Antônio Gomes, médico e pastor, conhecido como "Dr. Cloroquina". Segundo relato de médicos da cidade, além do cloroquinismo radical, o vice-prefeito já replicou, em redes sociais, postagens enaltecendo o sanguinário ex-ditador chileno Augusto Pinochet, um dos párias da humanidade. Um símbolo dos "grotões mentais" bolsonaristas. De fazer o Poeta tremer na cova.

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*Carlos Barroso é poeta e jornalista. Publicou o livro-objeto Carimbalas (2008) e o e-book 41 poemas contra (2020), entre outros. Prêmio Esso Regional de Reportagem (2001), com outros jornalistas

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