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Suspensão dos aumentos das mensalidades dos planos de saúde: vamos fazer contas?

Por Angélica Carlini
Atualização:

No Brasil, o setor de saúde suplementar em que atuam os planos de saúde é regulado pelo Estado, porque as ações e serviços de saúde são considerados de relevância pública e por essa razão ficam sujeitos à regulação, fiscalização e controle do Poder Público, como dispõe o artigo 197 da Constituição Federal.  

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A regulação do Estado é exercido por meio do Conselho Nacional de Saúde Suplementar - CONSU e a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, ambos subordinados ao Ministro da Saúde e regulados por lei federal.

Cabe a esses órgãos estudar, debater e implantar as melhores medidas para que a saúde suplementar no Brasil atenda suas finalidades especificadas por lei e pelos contratos firmados com os usuários; e, ao mesmo tempo, cabe a esses órgãos garantir que o mercado tenha equilíbrio entre a proteção dos consumidores que contratam com as operadoras e, a proteção da concorrência entre as operadoras para que os consumidores tenham sempre boas opções de contratação à sua disposição e possam escolher aquela que melhor atende suas necessidades.

Na atualidade, no Brasil, segundo dados da ANS tem 714 operadoras de saúde ativas e elas prestam serviços a 46.758.762 de usuários sendo a maior parte contratantes de planos coletivos empresariais (31 milhões). 

Todos os 46 milhões de usuários têm liberdade para utilizar seus contratos de saúde suplementar de forma ilimitada porque, ao contrário de um seguro de automóvel ou de um seguro de vida, não há limite prévio fixado para gastos. No seguro de automóvel o valor máximo a ser indenizado pela seguradora em caso de perda total é o valor de mercado do veículo na data em que ocorreu o fato gerador da perda; no seguro de vida o valor máximo a ser indenizado será o valor fixado no contrato como capital segurado na data da contratação e, no momento do óbito, esse valor será pago ao beneficiário independentemente de ser ou não suficiente para dar conta das despesas da família naquele momento.

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Nos contratos de saúde suplementar não há limite para o custeio dos procedimentos e eventos em saúde de que possa necessitar o usuário ao longo do período da contratação. Assim, não é incomum que uma pessoa que paga mil reais por mês de mensalidade do plano de saúde, tenha custos anuais em valor muitas vezes superior àquilo que ela pagou pelo período de doze meses, ou seja, doze mil reais. A realização de consultas, exames de imagem e um procedimento cirúrgico necessário em decorrência de uma fratura na mão ou no pé, custarão ao final de um ano valor superior àquele que foi pago como mensalidade. 

Como explicar que os planos de saúde tenham condições de receber doze mil reais de um usuário e seus familiares e custear despesas maiores que esse valor? Certamente muitos vão dizer que o valor remanescente entre os doze mil reais pagos como mensalidade e o valor custeado para procedimentos e eventos em saúde, sairá do lucro da operadora. Mas acredite, não é assim que acontece. Quem paga a diferença é você!

Os planos de saúde no Brasil são organizados com base na organização de uma mutualidade, um fundo comum para o qual contribuem todos os usuários que contratam com a mesma operadora de saúde. Essa contribuição tem apenas duas destinações: o custeio dos procedimentos e eventos em saúde de todos os usuários, ou seja, a organização de um fundo coletivo para pagamento de despesas assistenciais; e, o pagamento das despesas administrativas, de distribuição, tributos e remuneração de capital investido pelos acionistas da operadora de saúde, caso ela não seja uma cooperativa. 

Assim, a cada 100 reais pago pelo usuário na mensalidade, uma parte é destinada ao fundo mutual para custeio das despesas assistenciais; uma parte é destinada ao pagamento das despesas administrativas da operadora e, uma parte é destinada à remuneração do capital investido para que a operadora fosse criada.

Como vamos saber quanto de cada 100 reais é utilizado para cada finalidade? Quem dispõe dessa informação é o órgão regulador e fiscalizador das operadoras de saúde, a ANS, que recebe dados e informações de todas as operadoras do país de forma sistematizada e regular, para poder aferir se elas estão fazendo cálculos corretos para a formação do fundo coletivo que custeia as despesas assistenciais e, também para saber se elas estão sendo administradas de forma correta para poderem suportar suas despesas administrativas, tributárias, de distribuição e o reembolso do investimento. A vida das operadoras de saúde no Brasil não é segredo para a ANS que tem à sua disposição todos os dados de que necessita para avaliar o desempenho das operadoras e mapear os riscos de solvência.

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A ANS tem também os dados de sinistralidade do setor, que são os dados que medem a utilização pelos usuários e o impacto na mutualidade. No primeiro trimestre de 2020 a taxa de sinistralidade foi de 78,6%, ou seja, da parte destinada às despesas para custeio de atendimento dos usuários, 78,6% foi gasto e sobraram no fundo mutual apenas 21,4% dos valores arrecadados.

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Imagine que você tem uma reserva que economizou durante vários anos e que hoje está em 100 mil reais. E de repente, em apenas três meses do ano você tem que dispor de R$ 78.600,00 para pagar uma despesa. Restaram R$ 21.400,00 reais da reserva que você possuía e, certamente, isso vai causar um desconforto porque o valor é muito menor do que aquele que você tinha anteriormente.

Mas você fica tranquilo porque está empregado, continua recebendo seu salário em dia e poderá retornar ao valor anterior da poupança em algum tempo desde que mensalmente sejam depositados valores para encorpar novamente as suas reservas. 

Infelizmente, você é comunicado que está demitido e vai receber as verbas rescisórias, porém, durante algum tempo não terá mais salário mensal. 

Agora a situação ficou ruim! Como recompor os valores da poupança se não há mais entrada de salário mensal? As verbas rescisórias não vão durar para sempre e se você não se recolocar com brevidade, certamente a sua poupança também terá que ser utilizada para o custeio das despesas fixas.

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Não é uma situação confortável a princípio e com o passar do tempo, pode se tornar uma situação de risco, porque você poderá gastar toda a verba rescisória e também o que sobrou na sua poupança e continuar sem entrada mensal, o que o tornará inadimplente e despreparado para qualquer emergência.

Com as operadoras de saúde ocorre a mesma coisa! Se a sinistralidade média mensal é de 78,6% elas precisam receber os valores das mensalidades para poderem custear as despesas assistenciais. Sem as mensalidades elas são como trabalhadores desempregados diante da necessidade de custear suas despesas mensais.

Certamente se poderá questionar se é possível a comparação entre um trabalhador desempregado e um grupo econômico forte que tem instituição financeira, bancária, de seguros e também de seguro saúde. Não, essa comparação não é possível, mas lembre-se que nem todas as 714 operadoras ativas no Brasil são poderosos grupos econômicos. Algumas são regionais, de pequeno ou médio porte, fazem esforços significativos para manter as contas em dia e não sobreviverão muito tempo sem o pagamento das mensalidades.

Dois argumentos ainda precisam ser enfrentados. O primeiro é de quem diz: as operadoras tiveram utilização reduzida durante o período da pandemia porque as pessoas estavam com medo de ir às consultas médicas e realizar exames. Correto, houve redução na utilização dos planos de saúde mas, essa situação foi de represamento que será desafogado agora nos próximos meses do ano, na medida em que a curva de contaminação e de óbitos pela COVID-19 diminuir. Em poucas palavras, todos aqueles usuários que adiaram consultas, exames, cirurgias eletivas ou monitoramento de doenças crônicas, farão isso nos próximos meses e haverá utilização muito maior com consequente aumento das despesas assistenciais.

Segundo argumento: as operadoras poderão utilizar recursos de seus lucros para custear as despesas assistenciais. Esse argumento aparentemente lógico coloca por terra a estrutura organizacional e administrativa da atividade de saúde suplementar no Brasil, porque sem retorno do capital investido não existirão novos investimentos no setor durante muito tempo, o que a médio prazo tornará a concorrência menor e os valores de mensalidade muito maiores.

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Só existem preços bons nos mercados que possuem forte concorrência. Nos mercados em que a concorrência é fraca os preços são altos e o usuário não tem escolhas. Por vezes, os preços são tão pouco amigáveis que o usuário não tem alternativa e deixa de comprar ou contratar. 

O que parece uma solução justa neste momento de pandemia e crise econômica poderá ser um fator determinante para o aumento das mensalidades, a diminuição da concorrência e a fragilidade do setor nos próximos meses e anos. São 714 operadoras de saúde e nem todas terão fôlego para viver sem mensalidades! 

Parece uma boa solução para o usuário, mas não é! Quem pode pagar mensalidades deve continuar pagando, quem não pode deve negociar para que haja uma adaptação, porém a pior solução é suspender o pagamento para todos, os que podem e os que não podem, sem avaliar o que isso poderá impactar para o futuro do setor.

Pense nisso com bastante atenção, soluções fáceis de hoje poderão se tornar problemas agravados no futuro. E isso, certamente, nem as operadoras de saúde e nem seus usuários desejam que aconteça.

*Angélica Carlini, advogada, docente do ensino superior e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).

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