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Supremo Tribunal Federal ou de Exceção?

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Por Fernando Henrique de Moraes Araújo e Aluísio Antonio Maciel Neto
Atualização:
Fachada do Supremo Tribunal Federal em Brasília. Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Em 14 de março de 2019, o Presidente do STF (Min. Dias Tofolli) instaurou o Inquérito 4781/DF, sob o argumento de que "a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, resolve, como resolvido já está, nos termos do artigo 43, instaurar inquérito criminal para apuração de fatos e infrações correspondentes em toda sua dimensão. Designo instrutor do feito o ministro Alexandre de Moraes que poderá requerer estrutura necessária".

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Em razão da gravidade do caso e seus reflexos à sociedade brasileira, a seguir será realizada análise estritamente jurídica, com indicação daquelas que podem ser consideradas, em nosso entendimento, as principais violações ao ordenamento constatadas no procedimento.

A simples abertura do inquérito pelo próprio Min. Presidente do STF caracteriza a primeira violação jurídica praticada no procedimento, uma vez que fere o sistema acusatório brasileiro. De forma simples e rudimentar, significa dizer que à polícia e ao Ministério Público cabe o poder de investigação e ao segundo, o domínio e titularidade da ação penal. Ao Judiciário compete a função de julgar. A confusão destes papéis, como ocorreu no caso concreto, quando o STF iniciou investigação criminal, enseja clara violação do sistema acusatório estabelecido nos artigos 2º, 5º, XXXV, 129 e 144, todos da Constituição Federal. Em sua obra Direito Constitucional, o Min. Alexandre de Moraes examina as funções típicas e atípicas do Poder Judiciário: "Dessa forma, a função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses. O Judiciário, porém, como os demais Poderes do Estado, possui outras funções, denominadas atípicas, de natureza administrativa e legislativa. São de natureza administrativa, por exemplo, concessão de férias aos seus membros e serventuários; [...] São de natureza legislativa a edição de normas regimentais, pois compete ao Poder Judiciário elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos." (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 27ª ed., São Paulo: Atlas, 2011, p. 523). De se ver que na obra do próprio Ministro não foi indicada a hipótese tratada no atual inquérito (de investigação) como uma função atípica do Poder Judiciário.

A segunda violação jurídica decorre do fato de que não existe no Brasil o foro por prerrogativa de função da vítima. Em outras palavras, ainda que qualquer Ministro do STF venha a ser vítima de um determinado crime, a investigação deverá tramitar no foro em que o fato criminoso ocorrer (perante uma Vara e juízo de 1a Instância federal). A concentração e condução de uma investigação no seio do STF, sob a justificativa de que os Ministros da Corte seriam as vítimas, cria competência inexistente no ordenamento brasileiro. Basta simples leitura do art. 102, da CF, para verificar que a única hipótese em que o STF pode julgar atos de seus Ministros não se dá quando estes forem vítimas, mas sim autores de delitos: "I - processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;"

A terceira violação jurídica é verificada na Portaria de instauração do Inquérito, pois o Min. Presidente estende ao STF o "foro por prerrogativa de função para os "familiares" das vítimas (Ministros)", criando mais uma competência da Suprema Corte que a Constituição Federal jamais previu.

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Estas duas violações anteriores ainda criam uma quarta hipótese de ofensa à Constituição Federal, porque o inquérito 4781/DF afronta o art. 5º, XXXVII: "não haverá juízo ou tribunal de exceção". E é justamente isso que referido procedimento representa: a criação de um Tribunal de exceção, que se transforma em "ofendido/investigador/julgador". Há também violação direta do art. 5º, LIII, da CF, que dispõe: "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". Explicam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero que: "Juiz natural é juiz competente.[...] Juiz natural é juiz cuja competência é estabelecida de forma aleatória. É que não é juiz natural no processo jurisdicional aquele deliberadamente escolhido pela parte." (SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2018, p. 826-827). No caso do inquérito, os Ministros Presidente e designado, se consideraram os competentes para o caso, sem a devida observância do art. 102, da Constituição Federal.

A quinta violação jurídica consiste no fato de que o Regimento Interno do STF autoriza a abertura de inquérito na seguinte hipótese: "Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro." Logo, em se tratando de um simples regimento interno, que jamais poderia se opor ou sobrepor à Constituição Federal, somente nas hipóteses de pessoas sujeitas "à competência do STF, casos previstos no art. 102 da CF", é que o regimento poderia ser invocado, situação inexistente na investigação. Além disso, a investigação não se refere a fatos conhecidos, tampouco supostamente praticados na sede ou dependência do STF. E ainda que fosse o caso, a remessa ao Ministério Público seria obrigatória, o que jamais ocorreu no procedimento. A subordinação do Regimento Interno à Constituição Federal decorre da existência do princípio da Supremacia da Constituição, que segundo palavras do Min. Barroso: "é um dos pilares do modelo constitucional contemporâneo, que se tornou dominante em relação ao modelo de supremacia do Parlamento, residualmente praticado em alguns Estados democráticos, como o Reino Unido e a Nova Zelândia. Note-se que o princípio não tem um conteúdo material próprio: ele apenas impõe a primazia da norma constitucional, qualquer que seja ela. Como consequência do princípio da supremacia constitucional, nenhuma lei ou ato normativo - a rigor, nenhum ato jurídico - poderá subsistir validamente se for incompatível com a Constituição." (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 335).

A sexta violação jurídica praticada consiste no fato de que o Min. Alexandre de Moraes proferiu decisões (buscas e apreensões; bloqueio de contas em mídias sociais de "investigados"), de ofício (sem qualquer pedido), agindo, ao mesmo tempo, como vítima, investigador e julgador - sem que o órgão acusador (O Ministério Público) tivesse formulado qualquer pedido e sem a devida competência para o caso, conforme acima ressaltado.

A sétima violação jurídica se verifica na decisão do Min. Alexandre de Moraes, de ordenar, novamente sem qualquer pedido do Ministério Público, "a retirada de matérias jornalísticas publicadas pelos veículos de imprensa "O Antagonista" e "Revista Crusoé" dos sites de ambos os canais de comunicação, isso porque envolveriam denúncias contra o Min. Presidente do STF, com imposição de multa por descumprimento, o que configura ofensa à liberdade de imprensa (verdadeira censura). A violação é direta aos artigos 5o, IX, da CF: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;" e 220 e par. 2º, da mesma Carta Máxima: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...] § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística." E nesse ponto, cabe ainda destacar que a decisão do Min. Alexandre de Moraes apaga a história do próprio Plenário do STF, que em 30 de abril de 2009, ao julgar a ADPF 130 (que aboliu de forma absoluta a Lei de Imprensa n. 5.250/67), decidiu que: "Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Lei de Imprensa. Adequação da ação. Regime constitucional da "liberdade de informação jornalística", expressão sinônima de liberdade de imprensa. A "plena" liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia. A plenitude da liberdade de imprensa como reforço ou sobretutela das liberdades de manifestação do pensamento, de informação e de expressão artística, científica, intelectual e comunicacional. Liberdades que dão conteúdo às relações de imprensa e que se põem como superiores bens de personalidade e mais direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana. [...] A imprensa como instância natural de formação da opinião pública e como alternativa à versão oficial dos fatos. Proibição de monopolizar ou oligopolizar órgãos de imprensa como novo e autônomo fator de inibição de abusos. Núcleo da liberdade de imprensa e matérias apenas perifericamente de imprensa. Autorregulação e regulação social da atividade de imprensa. Não recepção em bloco da Lei nº 5.250/1967 pela nova ordem constitucional. Efeitos jurídicos da decisão. Procedência da ação."

A oitava violação jurídica decorre de decisão proferida pelo Min. Alexandre de Moraes em 16 de abril de 2019, quando ordenou, de ofício, que: "Após a realização de diligências, todos os envolvidos deverão prestar depoimentos". A decisão contraria, vez mais, outro precedente da própria Corte, proferido em 14 de junho de 2018, quando julgou as ADPFs 395 e 444 e decidiu por 6 votos a 5, proibir a condução coercitiva, ato por meio do qual o juiz determina que a polícia conduza um investigado ou réu para depor num interrogatório na sede do Distrito Policial.

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A nona e última violação consistiu em recusar, ainda em 16/04/19, o arquivamento do inquérito promovido pela PGR. Afinal, se o Ministério Público entendeu não haver legalidade na investigação, somente caberia ao STF acolher a promoção de arquivamento, pois ao Ministério Público é conferido o poder-dever de investigação e ajuizamento de ação penal.

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Os atos protagonizados pelos Ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes no Inquérito 4781 carregam de nuvens cinzas a democracia brasileira, calcada na imprensa livre e na liberdade de expressão; violam princípios constitucionais; arranham a imagem da instituição Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição e colocam em risco o Estado de Direito brasileiro.

O que se espera é que, com urgência, os demais Ministros do STF encerrem definitivamente o inquérito, com anulação das decisões nele proferidas, sepultando este que já pode ser considerado o mais infeliz capítulo da história da Suprema Corte brasileira.

*FERNANDO HENRIQUE DE MORAES ARAÚJO Promotor de Justiça (MPSP). Mestre em Direito (PUC-SP). Professor Universitário e de Cursos preparatórios para carreiras jurídicas.

ALUÍSIO ANTONIO MACIEL NETO Promotor de Justiça (MPSP). Mestre em Direito (UNIMEP). Professor Universitário.

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