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STJ: primeiras decisões em tempos de pandemia

Por Leandro Dias Porto Batista e Ana Gabriela Leite Ribeiro
Atualização:
Leandro Dias Porto Batista e Ana Gabriela Leite Ribeiro. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em um país continental, marcado por enormes diferenças culturais e regionais, as inevitáveis divergências jurisprudências tendem a se acentuar com o isolamento imposto pelo espalhamento do vírus Sars-Cov2. Ao Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), por vocação constitucional, cabe concertar (às vezes, consertar) as dissonâncias de entendimentos que, com toda vazão, chegam dos mais diversos tribunais pátrios, estaduais e federais.

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Com um processo de digitalização iniciado há mais de 12 anos, o STJ rapidamente se adaptou a prestar sua jurisdição de modo inteiramente remoto/virtual. Apenas para se ter uma dimensão da eficácia, os números divulgados pelo próprio Tribunal dão conta que, até o dia 14 de junho de 2020, com 67 sessões virtuais já realizadas, foram proferidas mais de 180 mil decisões em trabalho remoto[i]. À exceção de cartas rogatórias e homologações de decisões estrangeiras, com providências externas pendentes, o STJ tem imprimido, e muito, celeridade e efetividade aos seus processos em tempos de pandemia.

Conquanto a maioria dos casos julgados ainda sejam demandas em nada relacionadas à pandemia, o STJ já teve que enfrentar várias questões decorrentes direta ou indiretamente do impacto da covid-19 no cotidiano. É a análise dessas primeiras decisões e o prognóstico a que se propõe o presente artigo.

O primeiro tema relacionado à pandemia e julgado de forma colegiada foi a prisão civil por dívida alimentar. Sobre isso, há muito, o STJ sedimentou o seu entendimento no sentido de que "o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo" (Súmula 309 do STJ), o que, inclusive, foi incluído no Novo Código de Processo Civil, em seus artigos 528, §7º [ii], e 911, caput[iii].

Todavia, tencionada pela nova realidade, a Quarta Turma, ao julgar os Habeas Corpus nos 563.444/SP e 561.257/SP, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, entendeu que "o contexto atual de gravíssima pandemia devida ao chamado coronavírus desaconselha a manutenção ou a colocação do devedor em ambiente fechado, insalubre e potencialmente perigoso, inerente à prisão", determinando que, enquanto vigente a pandemia de covid-19, a prisão civil seja cumprida em regime domiciliar.

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O precedente, porém, enfrentou resistência em vários estados de nossa Federação, tanto que, a pedido da Defensoria Pública da União, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino atendeu à solicitação formulada no HC nº 568.021/CE, estendendo os efeitos da medida liminar, "para determinar o cumprimento das prisões civis por devedores de alimentos em todo o território nacional, excepcionalmente, em regime domiciliar".

Como atualmente tudo parece se passar nos domínios da transitoriedade e urgência, o referido entendimento não se sustentou por muito tempo. Revendo melhor a questão, diante da profusão de pedidos análogos, a Terceira Turma do STJ alterou seu entendimento, afirmando não ser possível o cumprimento em regime domiciliar, sob pena de relativizar o disposto no artigo 528, § 4º, do Código de Processo Civil[iv], e, assim, determinou a suspensão da prisão civil, durante o período da pandemia[v]. É um curioso fenômeno em que a jurisprudência inspira a lei processual que, após sua promulgação, impede uma nova guinada jurisprudencial.

As próprias medidas de isolamento em si têm sido alvo de diversos questionamentos julgados pelo STJ, desde habeas corpus até suspensões de liminares. Como via de regra, o STJ tem considerado que o debate sobre a reabertura de atividades possui índole constitucional, tendo em vista que os pedidos são centrados na análise da competência "para atuação administrativa e regulamentação do poder de polícia sanitária na atual situação de pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)", bem como na "ponderação entre a garantia do direito à vida e à saúde, de um lado, e o exercício da atividade econômica, de outro", e que sua análise, portanto, cabe o Supremo Tribunal Federal[vi].

Quando enfrentadas via habeas corpus, a Corte se posiciona no sentido de que o remédio constitucional não serve para se obter o controle em abstrato da validade das leis e dos atos normativos em geral[vii] e de que é necessária a identificação dos pacientes, assim como da individualização do suposto constrangimento ilegal[viii]. Exemplo disso foram as decisões proferidas em habeas corpus impetradas por deputados estaduais de Pernambuco (HC nº 580.653/PE, relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz) e do Rio de Janeiro (HC nº 572.269/RJ, relatoria do Ministro Jorge Mussi). O instrumento, porém, foi admitido sob outra perspectiva, quando impetrado por um casal em um processo de regulamentação de guarda, com vistas a evitar o recolhimento institucional de um bebê de dois meses. Segundo o relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, "as circunstâncias manifestamente excepcionais enfrentadas pelo país em decorrência do crescimento exponencial da pandemia de covid-19, produzida pelo vírus Sars-Cov2, acabam por elevar o caso retratado nos autos a uma situação deveras delicada e urgente, dada a possibilidade de ocorrência de dano grave e irreparável aos direitos do menor".

Com a crise econômica, não é de surpreender o número significativo de pedidos para a substituição da penhora ou do depósito judicial por seguro garantia. Todavia, apesar de o STJ entender que o seguro garantia equivale, para todos efeitos, ao dinheiro - inclusive sendo possível a substituição da penhora em dinheiro por seguro-garantia judicial[ix] -, em execuções tributárias, são várias as decisões pelo indeferimento da substituição.

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Para o Ministro Mauro Campbell, ao analisar a petição no REsp no 1.706.203/SP, "a substituição somente é admissível quando se trata de penhora para garantir execução fiscal (embargos à execução) e, ainda assim, com a concordância da Fazenda Pública ou com a demonstração cabal da necessidade de aplicação do princípio da menor onerosidade previsto no antigo art. 620, do CPC/1973 (hoje art. 805, do CPC/2015)" e que "a conjuntura excepcional trazida pela pandemia do coronavírus (covid-19) não legitima que sejam adotadas medidas que prestigiem o interesse individual da empresa, seus sócios, trabalhadores, clientes e fornecedores por sobre o interesse coletivo de toda a sociedade (interesse público)"[x]. Há outras decisões convictas nesse sentido como a da Tutela provisória no AREsp nº 1657806/SP, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves.

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Recomendações do CNJ sobre a pandemia também têm servido de fundamento às decisões monocráticas, a exemplo da Recomendação nº 63 que, entre outros pontos, prioriza a análise e decisão sobre questões relativas ao levantamento de valores em favor de credores ou empresas recuperandas (REsp nº 1.764.596/SP, relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão).

Há quem se aproveite, é claro, da urgência que a situação impõe para requerer os mais diversos tipos de tutela jurisdicional perante o STJ; tanto agentes públicos, como privados, têm se valido dessa hermenêutica de ocasião. O município de Itatiaia, no Rio de Janeiro, por exemplo, requereu a liberação de processo licitatório destinado à contratação de empresa para o serviço de limpeza urbana. Segundo a decisão do Ministro João Otávio de Noronha, porém, "a invocação da pandemia do novo coronavírus (covid-19) é indevida, e esta não impede, como se disse, a utilização de instrumentos administrativos próprios e adequados, mesmo que em caráter temporário e emergencial" (SS nº 3.213/RJ). Há mais e mais, como se deve imaginar!

Daí porque o STJ tem priorizado a análise da expectativa do direito antes mesmo do perigo na demora envolvido. Exatamente por isso, cumulam decisões no sentido de que o início de execução provisória fundada em acórdão alvo de recurso especial, mesmo em tempos de pandemia, não constitui justificativa suficiente para a concessão do efeito suspensivo ao recurso especial (EDcl na TP nº 2.680/PR, relatoria da Ministra Nancy Andrighi).

Para além das medidas de isolamento, de toda sorte, urgências devem se desdobrar, de uma forma ou de outra, até o STJ. É bastante expressiva, nesse aspecto, a previsão externada pelo Ministro João Otávio de Noronha no 1º Congresso Virtual do Fórum Nacional de Juízes de Competência Empresarial (Fonajem) de que "os desdobramentos econômicos da covid-19 passarão necessariamente pelo Judiciário e que o ordenamento jurídico brasileiro tem instrumentos para lidar com isso" [xi].

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Por certo, caberá à Corte uniformizar as tantas divergências decorrentes, inevitáveis diante dos reflexos, dificilmente dimensionáveis, dessa pandemia, como a impossibilidade de atendimento de prazos decadenciais, indenizações por atrasos e as inimagináveis hipóteses de descumprimentos contratuais que, se não mediadas, certamente lotarão os tribunais.

Essa perspectiva de litígios faz lembrar da sessão da Primeira Turma, realizada no dia 26 de maio de 2020, quando o Ministro Napoleão Nunes - sempre preciso - ao complementar a preocupação externada pelo Ministro Gurgel de Faria sobre a missão maior do STJ de uniformização jurisprudencial, revelou o seguinte: " -Presidente, todo dia eu rezo um Pai Nosso e uma Ave Maria para a jurisprudência do STJ. Todo dia, eu rezo"[xii]. Rezemos todos, iremos precisar!

*Leandro Dias Porto Batista, sócio do Sergio Bermudes Advogados e mestrando em direito pela Universidade de Brasília - UNB; Ana Gabriela Leite Ribeiro, sócia do Sergio Bermudes Advogados e pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

[i]http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Mais-de-180-mil-decisoes-foram-proferidas-pelo-STJ-desde-o-inicio-do-trabalho-remoto.aspx

[ii] Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.

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[...]§ 7º O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.

[iii] Art. 911. Na execução fundada em título executivo extrajudicial que contenha obrigação alimentar, o juiz mandará citar o executado para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento das parcelas anteriores ao início da execução e das que se vencerem no seu curso, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo.

Parágrafo único. Aplicam-se, no que couber, os §§ 2º a 7º do art. 528 .

[iv] Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a justificar a impossibilidade de fazê-lo.

[...]§ 4º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns.

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[v] HABEAS CORPUS. OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA. INADIMPLEMENTO PRISÃO CIVIL. DECRETAÇÃO. PANDEMIA.  SÚMULA Nº 309/STJ. ART. 528, § 7º, DO CPC/2015. PRISÃO CIVIL. PANDEMIA (COVID-19). SUSPENSÃO TEMPORÁRIA. POSSIBILIDADE. DIFERIMENTO. PROVISORIEDADE.

  1. Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado.
  2. Hipótese emergencial de saúde pública que autoriza provisoriamente o diferimento da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia.
  3. Ordem concedida.

(HC 574.495/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 26/05/2020, DJe 01/06/2020)

[vi]Cita-se, exemplificadamente, o pedido do município de Votuporanga para suspender a decisão do Desembargador do Vico Mañas, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que não permitiu "o abrandamento de medidas de isolamento social no município", para combater a pandemia de covid-19 (SLS 2720/SP); o pedido do município de Umuarama para suspender a decisão do Desembargador José Maurício Pinto de Almeida, do Tribunal de Justiça do Estado de Paraná, que suspendeu o "toque de recolher" na cidade (SLS 2690/PR); ou o pedido do município da Paraty para suspender a decisão da Desembargadora Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que deferiu a liminar para permitir que as empresas Booking e Airbnb, mantivessem o funcionamento digital para permitir a reserva de hospedagem e locação de imóveis durante o período de isolamento (SLS 2693/RJ).

[vii] cf. AgInt no RHC 111.573/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 05/11/2019, DJe 18/11/2019.

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[viii] cf. AgRg no RHC 108.042/ES, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 21/03/2019, DJe 01/04/2019; AgRg no RHC 41.675/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 05/10/2017, DJe 11/10/2017.

[ix]  Cf. REsp 1.838.837/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/05/2020, DJe 21/05/2020.

[x] No mesmo sentido: Petição no Recurso Especial no 1.674.821/PR, de relatoria do Ministro Mauro Campbell; Tutela Provisória no Agravo no Recurso Especial nº 1.657.806/SP, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves.

[xi] http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Para-o-presidente-do-STJ--%E2%80%9Cprincipio-da-Covid-19%E2%80%9D-nao-pode-levar-a-interferencia-excessiva-nos-contratos.aspx

[xii] https://www.youtube.com/watch?v=hCuOPwVBqZ8&feature=youtu.be

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