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STJ decide que o plano de previdência e seguro de vida podem se extinguir sem que segurado/participante seja notificado

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Por Paulo Luiz de Toledo Piza e Luca Giannotti
Atualização:
Paulo Luiz de Toledo Piza e Luca Giannotti. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No recente julgamento do Recurso Especial n.º 1.691.792, o STJ discutiu interessante questão relacionada à licitude da exclusão do pecúlio previsto em plano de previdência em função do inadimplemento das mensalidades do plano.

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Após contribuir por 41 anos como participante de plano de previdência privada, uma pessoa com Alzheimer parou de efetuar o pagamento mensal das contribuições. Com seu falecimento, os beneficiários descobriram o contrato e exigiram o pagamento do pecúlio à entidade de previdência privada. Naquele momento, o pagamento tinha sido interrompido há mais de sete anos sem nenhuma manifestação da entidade. Mesmo assim, a interrupção levou à exclusão imediata do de cujus da lista de participantes. Na decisão, o STJ reconheceu que a jurisprudência dominante da corte exige a interpelação do segurado para que haja mora e resolução, mas que isso seria inaplicável ao caso. Os longos anos sem pagar a contribuição legitimariam a recusa de pagar o pecúlio da entidade privada. Ou seja, o tempo suprimia a falta de comunicação com o segurado: não haveria "mero inadimplemento" [do segurado], senão a inequívoca manifestação de desinteresse na continuidade da relação contratual."

A decisão é muito relevante, porque pode vir a ser utilizada em outras questões previdenciárias e de seguro para suspender ou extinguir o direito dos segurados em mora no pagamento do prêmio, não obstante haja Súmula do STJ exigindo, para tanto, a interpelação para pagamento do prêmio vencido.

Tradicionalmente, os planos de previdência, além de estabelecerem as regras para constituição e prestação dos benefícios previdenciários, sob a forma de renda, incluem ainda o chamado pecúlio: o comprometimento, por parte da entidade de previdência, de pagamento de um capital único no caso da morte do participante.

Os planos de previdência são esquemas contratuais que compreendem duas etapas. No primeiro momento, reúnem-se recursos mediante o recolhimento de contribuições individuais. No segundo, após uma data predeterminada, os valores são vertidos para o pagamento de renda ao interessado, a título de aposentadoria ou complementação da aposentadoria. Poderá variar o regime financeiro e, por conseguinte, a maneira como será determinado o valor da renda, assim como o tipo de renda (mensal, reversível ao cônjuge ou não etc.), mas a estrutura e a função do negócio serão as mesmas.

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Quando, em conjunto com sua contribuição individual, o participante paga um valor especificamente destinado ao pecúlio, diz-se normalmente que se acopla um seguro de vida ao plano de previdência. Aqui, não é a somatória dos valores previamente pagos pelo segurado que será restituído em caso de sinistro a seus beneficiários, mas sim aquele capital fixo, em sua integralidade, pouco importando se o sinistro ocorra logo no início da vigência do plano ou muitos anos depois.

Por essa razão, no julgamento, em que se discutiu o direito dos beneficiários ao pecúlio estabelecido no ambiente de um plano de previdência, entendeu-se apreciar a questão à luz da disciplina legal dos seguros de vida. Mas se isto, como visto, é coerente com a natureza negocial, por outro lado peculiaridades relacionadas ao modo de pagamento do prêmio e ao cumprimento do dever de interpelação no contrato de seguro não poderiam ser desconsideradas.

A primeira delas é o regime especial de interpelação, mora e extinção do contrato de seguro. No direito das obrigações, o inadimplemento e a mora não são a mesma coisa. Na opinião da doutrina majoritária, inadimplemento é a violação de qualquer dever integrante da relação obrigacional. Pela complexidade da relação obrigacional moderna, existem diversos tipos de violação: o inadimplemento relativo, relacionado à mora e à violação de um dever de prestar, o inadimplemento absoluto, relacionado à impossibilidade de prestar, e a violação positiva do crédito, relacionado não a uma prestação, mas à proteção da outra parte na relação obrigacional.

A mora liga-se à violação de um dever vinculado ao interesse do credor a receber o bem da vida prometido (prestação) ao entrar na relação obrigacional. Para que ela ocorra, no entanto, não basta a violação: é necessário que a prestação não seja realizada por fato de responsabilidade do devedor (art.  396) e que os requisitos da mora ex re (em geral, obrigação líquida com termo acordado - art. 397) ou ex persona (interpelação - art. 397, par. único) sejam satisfeitos. Assim, quando o devedor não presta quando lhe cabia, mas não foi interpelado para tanto, há inadimplemento sem mora, ou, como alguns preferem, mora sem efeito.

A exigência de interpelação do segurado (ou, no caso, do participante) para o cumprimento em caso de não pagamento do prêmio (ou da parcela incluída na contribuição previdência) é já há bom tempo reconhecida na doutrina e na jurisprudência do país, inclusive do STJ, como o próprio acórdão aponta. Para que a seguradora possa deixar de prestar a garantia, não basta o mero inadimplemento, mas deve existir mora no pagamento do prêmio (ou a mora deve produzir efeitos), já que o devedor deve ser interpelado para pagar as parcelas que inadimpliu. Assim, o seguro tem um regime específico de exceção de contrato não cumprido: não se suspende a garantia pelo mero inadimplemento do prêmio, mas sim pela mora do segurado ou do participante, que, instado a cumprir, deixa de fazê-lo.

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Tecnicamente, portanto, a entidade de previdência continuou prestando a garantia, porque, se não interpelou, não poderia suspender a garantia, segundo a interpretação dominante do art. 763 do Código Civil.

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Mais do que suspender a garantia, a entidade previdenciária extinguiu o contrato, em razão do inadimplemento absoluto (fato em si questionável, tratando-se de obrigação pecuniária e de uma contraprestação que vinha sendo realizada), sem comunicar o participante.

No plano da resolução, o caso mostra patentemente por que, na maioria absoluta dos negócios jurídicos, exige-se que o destinatário dos efeitos do ato de autonomia privada (dentre eles, o exercício do poder de resolver um contrato) tome conhecimento de seu conteúdo para que o negócio possa vir a ser eficaz (declarações negociais receptícias). Ou seja, sem que o segurado seja avisado da escolha da seguradora de resolver o contrato, sua decisão não é eficaz, perpetuando-se a garantia securitária.

Essa exigência é extremamente lógica e com repercussões práticas importantes, sendo esse um dos casos mais claros do porquê exigir o comunicado à outra parte sobre a resolução. Sem a notificação, o "excluído do plano" por inadimplemento não teria como saber que não dispunha mais do seguro.

A omissão da entidade torna-se ainda grave quando consideramos que, ao contrário do que ocorre no regime geral das obrigações, o participante ainda recebia a contraprestação (a garantia securitária) porque não foi interpelado pelo inadimplemento do dever de pagar prêmio. Assim, a resolução é muito mais danosa ao segurado do que nos outros contratos sinalagmáticos

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Não por outro motivo, o regime jurídico do contrato de seguro apresenta restrições à extinção do contrato de seguro. O art. 13 do Decreto-lei 73/1966, por exemplo, proíbe todas as cláusulas que preveem a extinção do contrato para além das hipóteses legais. Outro caso é regra do § 5º do art. 6º do Decreto 60.459/67, segundo a qual a falta do pagamento do prêmio no prazo devido implicaria o cancelamento da apólice foi desde cedo reputada nula (p. ex., JTJ-LEX 211/67, RT 511/130).

Outro ponto a considerar é que se trata de seguro de vida em grupo. Afinal, nesse tipo de seguro, quem deve o prêmio não é o segurado, mas o estipulante (Código Civil, art. 801, § 1º). Se este deixou de incluir o participante na relação de segurados encaminhada à seguradora, não por isto o segurado perde o direito de receber o capital segurado em caso de sinistro. Cumprir-lhe-ia cobrar o prêmio não pago do estipulante, se não houve regular exclusão do participante do grupo segurado.

Ao estipulante, a seu turno, caberia exigir do segurado o pagamento da contribuição, em vez de excluí-lo da relação. Se a seguradora não pode resolver o seguro sem interpelação e notificação adequadas, tampouco pode a entidade de previdência, que deveria cuidar de informá-lo e certificar-se de eventual equívoco, colhendo, em caso de desinteresse, sua manifestação expressa de desinteresse na cobertura de risco ou no pecúlio. Assim, por exemplo, em 2004, quando, segundo o acórdão, o participante requereu o resgate do "plano de renda", poderia ter sido informado das pendências relacionadas ao pecúlio.

Para além das questões mais técnicas do direito das obrigações, o acórdão fundamenta sua decisão na boa-fé, citando um trecho de artigo sobre interpretação contratual e o art. 113 para se distanciar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre interpelação. Pelo fato de o segurado ter ficado 7 anos sem efetuar o pagamento, entendeu-se que a exigência de interpelar pelo inadimplemento e notificar da resolução haveria de ser relativizada, atribuindo-se ao segurado conduta contrária à boa-fé.

O raciocínio é preocupante. Além de não enquadrar o caso em qualquer instituto tradicional ligado à boa-fé objetiva em sua faceta corretiva (venire contra factum proprium, supressio e surrectio etc.) e aplicar rigorosamente os requisitos já depurados tanto na jurisprudência como na doutrina - que tenderiam à primeira vista a favorecer o participante -, a decisão acaba por afastar regras do Código Civil sobre inadimplemento, mora e resolução do contrato. A boa-fé objetiva não pode ser usada para subverter a escolha do legislador em criar um regime mais protetivo ao segurado, "suprindo" as etapas puladas pela seguradora, que tornam os atos ineficazes, com o passar do tempo. Seguindo a lógica do acórdão, seria possível afirmar que um negócio nulo se convalida com o tempo; basta esperar o suficiente.

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Assim, em um momento em que a ordem do dia é não abusar da invocação da boa-fé, valendo-se das soluções que o sistema já nos oferece, encontramos um acórdão na contramão, que recorre ao instituto com pouco cuidado para fundamentar uma decisão contrária à jurisprudência e à disciplina legal aplicável ao contrato de seguro.

*Paulo Luiz de Toledo Piza é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, sócio da ETAD - Ernesto Tzirulnik Advocacia

*Luca Giannotti é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), associado ao Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio da ETAD - Ernesto Tzirulnik Advocacia

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