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STF decide sobre a doação de sangue por homossexuais em tempo de covid-19

Por Luiz Felipe Centeno Ferraz , Bianca dos Santos Waks e Francisca Guerreiro Andrade
Atualização:
Luiz Felipe Centeno Ferraz, Bianca dos Santos Waks e Francisca Guerreiro Andrade. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Neste último dia 8 de maio a população LGBTQI+ obteve uma importante vitória do Supremo Tribunal Federal (STF), com a decisão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5543, de que homens homossexuais podem doar seus sangues a terceiros.

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O placar de 7x4 põe um ponto final no Brasil a uma discussão mundial iniciada nos anos oitenta, época em que se descobriu que uma das formas de transmissão do HIV se dava por meio da transfusão de sangue. Naquele momento, constatações de que especificamente homens homossexuais representariam o grupo transmissor do vírus geraram enorme preconceito que estigmatizou a saúde desta população.

No Brasil, as doações de sangue por homens homossexuais foram restritas pelo Ministério da Saúde um pouco depois, em 1991, em alinhamento às então orientações da Organização Mundial da Saúde.

Mais de duas décadas se passaram e o tratamento da doença avançou de tal forma que ela regrediu da condição de grave epidemia à de doença crônica, conforme estatísticas da UNAIDS - o programa das Nações Unidas para criar soluções e ajudar no combate à AIDS. Apesar dessa incontestável evolução, o entendimento do governo federal até hoje se manteve o mesmo de 1991: a regra mantém a orientação de que são inaptos a doar sangue os "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes" nos doze meses antecedentes, entre outras hipóteses.

A regra sempre foi falha em seu autodeclarado propósito de resguardar a saúde pública porque nunca evitou que homens homossexuais doassem sangue omitindo suas orientações e práticas sexuais ao longo do tempo - afinal, não é possível fazer investigação definitiva sobre a vida íntima de todo e qualquer doador. A despeito disso, no entanto, a indignidade da situação sempre permaneceu.

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É interessante observar a incoerência do Ministério da Saúde nessa posição por duas razões. A primeira deriva do texto da própria regra: ao habilitar a doação do sangue "heterossexual" após aprovação por testes específicos e pressupor que o sangue "homossexual" masculino está exposto a tanto risco que sequer testes poderiam ser feitos, a norma ignora o fato de que a primeira população possui sexualidade potencialmente tão livre e exposta a riscos quanto a segunda.

A segunda razão de incoerência da regra está no fato de que desde 2011 o Ministério da Saúde promove a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais com o objetivo de promover a saúde integral da então chamada população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo. Não é consistente que, por um lado, o Ministério busque promover a equidade deste grupo e o combate ao estigma da orientação sexual com esse tipo de política, e, por outro lado, promova ele mesmo o estigma via impedimento à doação de sangue.

Apesar desses fatos, os órgãos de saúde formalmente rejeitam qualquer ideia de discriminação, recorrendo a uma estatística da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que a prática de sexo entre homens aumentaria em 19,3 vezes a possibilidade de contágio ao ser comparada com homens heterossexuais. A OMS, no entanto, já reconheceu que essa estatística está desatualizada.

Essa pauta de costumes camuflada de cuidado com a saúde da sociedade já foi superada em vários países civilizados, mas no Brasil sua insistente manutenção pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa ao longo dos anos mostrou que a transição do País para uma realidade internacional anti-discriminatória provavelmente não viria de forma espontânea.

Daí a importância de agora em maio o STF formalmente ter reconhecido que a exclusão do direito de homens homossexuais a doar sangue fere a Constituição Federal por violar preceitos fundamentais como o da dignidade humana, o direito fundamental à igualdade, o objetivo de promover o bem de todos sem discriminações e o princípio da proporcionalidade - o qual permite aferir se determinada medida legislativa, administrativa ou judicial é adequada à luz da necessária garantia de interesses sociais.

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É bem verdade que o caminho já estava favorável a isso: em outubro de 2017, o ministro Edson Fachin havia votado pela procedência da ADI em seu relatório sobre o processo, entendendo que o estabelecimento de um grupo de risco com base em sua orientação sexual configura ato discriminatório e desproporcional, tratando-se de restrição desmedida a pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue.

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Da mesma forma, também é verdade que o placar de sete votos favoráveis ao assunto não pode ser considerado apertado: ao longo do tempo a ministra Rosa Weber e os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux votaram no mesmo sentido, e em votação em plenário virtual a ministra Cármen Lúcia e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli se alinharam a essa posição.

É interessante, no entanto, notar que as vozes discordantes de quatro ministros mostraram que o assunto não é exatamente pacífico.

O voto do ministro Alexandre de Moraes chegou a pedir parcial procedência da ação, entendendo que o limite imposto pelas normas questionadas não configuraria discriminação à orientação sexual e sim necessidade de proteção ao doador, ao receptor e aos profissionais envolvidos, de modo que homossexuais masculinos poderiam doar sangue desde que o material fosse submetido a teste imunológico. Foi um bom aceno, mas carente de ajustes: a proteção ao receptor deve ser ampla e incondicional à orientação sexual do doador - e a submissão a teste imunológico deve ocorrer qualquer caso, também de forma incondicional ao doador.

As visões dos ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, no entanto, foram ainda mais discordantes da do ministro Fachin. O voto do ministro Lewandowski teve por única base trecho de matéria de jornal de grande circulação que apontava que pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo defendia que no tempo a prevalência do vírus HIV entre homossexuais masculinos foi 450 vezes superior à encontrada entre os doadores de sangue, e que o Boletim Epidemiológico de Aids (2016) mostrou que em 50,4% dos homens tiveram exposição exclusivamente homossexual, bissexual (9%) e heterossexual (36,8%).

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Com base nisso, o voto depreendeu que a doação de sangue por homossexuais masculinos pode gerar risco aumentado de transmissão do vírus (e de outros agentes), entendendo, assim, que não haveria discriminação e sim questão de saúde pública. Como deixou implícito o voto, homossexuais masculinos podem sem problemas doar sangue desde que se abstenham de suas vidas sexuais por doze meses.

O voto não atentou, no entanto, para o que a medicina diagnóstica há muito aponta: a orientação sexual por si só em nada compromete os procedimentos hemoterápicos - de fato, testes médicos atuais têm condições de detectar o vírus em trinta dias (ao contrário dos doze meses impostos pelo Ministério da Saúde) independentemente da orientação sexual do doador. Como falsos resultados e janela imunológica podem existir tanto no sangue do homossexual quanto do heterossexual, o critério de seleção deveria ser mais neutro e abrangente: sexo desprotegido e número de parceiros, independentemente de suas orientações sexuais. Vencida essa evidência, o que tende mesmo a restar é a discriminação.

Considerados todos os fatos que o assunto abriga, entretanto, está claro que o placar final da decisão foi histórico:  - além de rejeitar a discriminação abertamente existente - resolve questões que estavam implícitas ao assunto: (a) não há sentido em se manter a hipocrisia da proibição de uma regra facilmente burlável, (b) não é válido manter uma visão antiga sobre a doença em uma época de diagnósticos precisos para o material doado e (c) não há vantagem em se sustentar o preconceito da regra em face de necessidades mais importantes como a de salvar vidas.

Um dos poucos fatores positivos que a era covid-19 trouxe à sociedade foi forçosamente adiantar algumas decisões que somente seriam tomadas no futuro. Outro foi o de deixar clara a certeza de que algumas posições passadas não mais se sustentam hoje. Essa é uma delas.

*Luiz Felipe Centeno Ferraz, Bianca dos Santos Waks e Francisca Guerreiro Andrade são, respectivamente, sócio e advogadas do escritório Mattos Filho

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