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Sobre a produtividade do Poder Judiciário: de Descartes ao descarte

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Por Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade
Atualização:
Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Ainda que com recentes e bem localizados recrudescimentos - o "terraplanismo cultural" é um curiosíssimo fenômeno ultracontemporâneo (com poderosas representações no Brasil) -, o chamado "método científico" pode ser tomado como algo de universal. Seu império é visto como um dos principais legados da colonização europeia sobre o restante do planeta e, a despeito das indiscutíveis mazelas oriundas desse modo de "aculturação", deve-se ao método científico os mais notáveis e cotidianos benefícios fruídos pela humanidade. Em pouquíssimas palavras, tal método estabelece um caminho racional para conclusões baseadas na experimentação e na observação de todo o conjunto.

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Pois bem.

Recentemente, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou levantamento de dois economistas - Jens Matthias Arnold e Robert Grundke -, afirmando ser o Judiciário brasileiro lento, abarrotado de processos, caro, incerto e ineficiente.[1] As conclusões são tomadas a partir de comparações com dados de países da Organização e foi quase automaticamente reproduzido em mídias nacionais, sem maior critério crítico. Afinal, nada como um bom ensejo para o apedrejamento ético das instituições. A honestidade intelectual exigirá, porém, uma análise mais cuidadosa. O que nos devolve ao método científico.

Desde a publicação de seu "Discurso do Método", de 1637, René Descartes é o mais conhecido dos sistematizadores do método científico, mas suas sistematizações - coerentemente - nunca deixaram de ser aperfeiçoadas. Leia-se na fonte:[2]

"[...] Não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira que 'eu' não conhecesse evidentemente como tal; Dividir cada uma das dificuldades que 'eu' examinasse em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las; Conduzir por ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer até o conhecimento dos mais compostos; e por fim, fazer em toda parte enumerações tão completas, e revisões tão gerais, até ter certeza de nada omitir."

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Duzentos anos depois, Charles Darwin bebeu dessa mesma fonte e definiu que a "ciência consiste em agrupar fatos para que leis gerais ou conclusões possam ser tiradas dele". Sem a definição da completude dos fatos, não há como se retirar conclusões corretas, não há ciência. E é por isso que as conclusões da OCDE são equivocadas.

A uma, são equivocadas porque é no mínimo inconveniente tratar um Poder da República, cuja missão institucional é "realizar Justiça" (veja-se, outrora, a revogada Resolução CNJ n. 70/2009), como um fator de custo para a lucratividade privada. Afinal, a prestação jurisdicional é serviço público que interessa a toda sociedade (ainda mais uma tão desigual como a brasileira). Como dissemos outrora,[3]

"[...] arrecadar não é função do Poder Judiciário. [...] Seguindo-se esse raciocínio [...], teríamos de extinguir a Câmara dos Deputados, que custa cerca de R$ 86 milhões/mês ao contribuinte (i.e., cerca de um bilhão de reais por ano), sem qualquer "arrecadação" sensível (logo, participação de 0,0% para fazer frente às próprias despesas).Haveríamos de extinguir, ainda, as nossas Forças Armadas, que em 2015 obtiveram, no Brasil, o 11º maior orçamento em um ranking de 171 países (foram R$ 31,9 bilhões em 2014; para 2015, a previsão chegou a R$ 81,5 bilhões, para todo o Ministério da Defesa), sem tampouco "retornar" centavo algum para o erário. Vamos extinguir essas instituições? É evidente que não."

Mas não é só.

A duas, e sobretudo, as conclusões da OCDE são equivocadas porque se perdem em uma simplificação infeliz, própria da inadequação de método do estudo. Expliquemos.

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Seduzidos pela simplicidade, os analistas comparam percentuais de PIB gastos nos Judiciários dos países, supondo-se que todos tivessem idênticas atribuições. As responsabilidades direcionadas ao Poder Judiciário brasileiro têm volume incomparável, seja à vista das suas singulares atribuições atípicas, incomuns em outros sistemas (como, por exemplo, as inspeções, os controles cartorários judiciais e extrajudiciais, os procedimentos de jurisdição voluntária e as funções eleitorais administrativas), seja ainda pelo quase "monopólio", no território nacional, da função de composição de litígios, com pouquíssimo espaço para meios alternativos de solução de conflitos. Ademais, a opção nacional é de amplíssima concessão de assistência judiciária gratuita, franqueando enorme acesso ao Judiciário, sem qualquer custo privado e - é claro - elevando-se as despesas públicas. Mas esse, convenhamos, é um custo absolutamente benfazejo e defensável, se não quisermos desautorizar Mauro Cappelletti e Brian Garth.[4] Enfim, como se vê, não há qualquer equivalência nos paralelos, nem no volume de atribuições, nem nas demandas enciclopédicas de conhecimento e habilidades cobradas da Magistratura brasileira, para o bem ou para o mal. Hodiernamente, no Brasil, espera-se inclusive que o Magistrado seja juiz e também gestor, "le duela a quien le duela" (enquanto que no Chile, p. ex., as unidades judiciárias são geridas por um servidor dedicado exclusivamente a isto, com o devido treinamento e formação; e, no plano macropolítico, a gestão se faz pela Corporación Administrativa, que já faz escola na América Latina).[5]

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Enfim, e a três, afirmar a "ineficiência" do Judiciário brasileiro soa quase a desonestidade. Com dados de 2016, a média de julgamentos por juiz no país foi de 1.757 processos, significando 5,8 processos decididos por dia. No mesmo período, os magistrados italianos produziram mil sentenças, enquanto os espanhóis e portugueses tiveram médias de 700 e 400, respectivamente. Em termos simples e claros: pelos dados comparativos disponíveis, os juízes brasileiros são seguramente os mais produtivos do planeta. E a produtividade ainda vem crescendo em todas as instâncias e anos: em 2018, foram julgados quase um milhão de processos a mais do que no ano anterior, com produtividade média subindo em 4,2%. Quanto ao tempo médio de tramitação, evoluímos de 5 anos e 6 meses em 2015 para 4 anos e 10 meses em 2018. Onde está, afinal, a desonestidade?

O tema guarda uma complexidade que não pode ser ignorada; e as respostas ingênuas tendem a ser injustas. Arranhar o superficial e sugerir veredictos a partir da comparação de termos incomparáveis não é mais que pseudociência, porque uma análise genuinamente científica haveria de perceber as diferenças conjunturais e estruturais e, a partir disso, diagnosticar, p. ex., a inegável abundância de litigiosidade brasileira. Por que o país abriga uma inexorável cultura de inadimplementos, que chega a ter expressão vulgar no dia-a-dia dos cidadãos (como, e.g., no célebre ultimato do "vá procurar os seus direitos")? Por que a legislação e própria jurisprudência resguardam, em boa medida, a protelação das obrigações e os "atalhos" que elidem a legislação em vigor? Isso nada tem a ver com instrumentos de eficácia do Judiciário; tem a ver com a institucionalidade de certos níveis de delinquência.

Em um planeta eticamente "redondo", combate-se todo tipo de infrator - e não nos referimos apenas ao delinquente criminal -, impondo sanções robustas que realmente dissuadam o agir ilícito. Fornecedores de produtos inseguros recebem multas pesadas até que ajustem suas práticas e suas mercadorias; corruptos, fraudadores e sonegadores sofrem penalidades pedagógicas e não se escoram na certeza da impunidade; devedores contumazes - inclusive nas relações de trabalho - são instados a corrigir suas táticas de sonegação, com um espectro de medidas que se estendem das sanções meramente pedagógicas às reprimendas penais efetivas, quando necessárias. O problema não é sobrar Judiciário, mas faltar civilidade. Não se veem estratégias de longo prazo para prevenir as mazelas que o Judiciário corrige. E, em bom português, delinquência não se vence com "borracha", mas com políticas públicas consistentes, preventivas e repressivas.

Hoje - e no momento em que a pesquisa da OCDE foi feita -, grande parte da estrutura do Judiciário brasileiro encontra-se capturada pelos interesses pouco nobres dos grandes litigantes cíveis, tributários e trabalhistas: instituições financeiras, telefônicas, grandes varejistas e empresas de terceirização de serviços, p. ex., que preferem o litígio judicial à adequação de procedimentos; e, para mais, o próprio Poder Público, não raramente. A própria estratégia de negócios é construída a partir da negação de direitos sociais, da insolvência tributária e da inexecução dos contratos de consumo. Com o volume, os processos ficam baratos, desde que se resista às decisões judiciais e se recorra "ad nauseam".Os números bem o demonstram: enquanto nos EUA 95% das ações judiciais - cíveis e criminais - são resolvidos por acordos, no início do processo, esse índice não chega a 20% na Justiça comum brasileira (em primeiro grau). Por aqui, o jogo amiúde se dá com as regras dos "repeat players": abarrotar as varas do país e utilizar todas as instâncias, dilatando a satisfação de direitos pelo maior tempo possível.

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Enfim, ao ignorar os fatores próprios da equação judiciária brasileira e optar pela simplificação estigmatizante, a OCDE aproximou-se daquilo que o francês Descartes chamou de "certeza metafísica" (no sentido mais puro): se dela não há evidências indiscutíveis, "não se pode negar, a não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo suficiente para não possuirmos total segurança a respeito". E, ao seguir essa vereda, o estudo da OCDE terminou por merecer - com o perdão do trocadilho (e de novo em bom português) - o mais imediato descarte. Ou, se não, merece ao menos a dúvida fundada quanto às intenções (ou aos preconceitos); afinal, "não há nada no entendimento que não tenha estado primeiramente nos sentidos"...

*Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019

*Rodrigo Trindade, juiz do Trabalho, presidiu a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4.ª Região (Rio Grande do Sul) no biênio 2017-2019

[1] Cfr., por todos, MOREIRA, Assis. Estudo da OCDE sugere necessidade de reduzir ineficiência judicial no Brasil. Valor, 17.3.2021. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/17/estudo-da-ocde-sugere-necessidade-de-reduzir-ineficincia-judicial-no-brasil.ghtml . Acesso em: 26/3/2021.

[2] V., por todos, DESCARTES, René.Discurso do Método. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 54.

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[3] V. FELICIANO, Guilherme G. Justiça do Trabalho, essa outra desconhecida. Jota (Coluna Juízo de Valor), 21.3.2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/justica-do-trabalho-essa-outra-desconhecida-21032017 . Acesso em: 26/3/2021.

[4] V. CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, passim.

[5] CORTE SUPREMA DE JUSTICIA (Paraguay). Recaban experiências sobre administración del Poder Judicial del Chile. Disponível em: https://www.pj.gov.py/notas/13216-recaban-experiencias-sobre-administracion-del-poder-judicial-de-chile . Acesso em: 26/3/2021.

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