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Sobre a dupla jornada de Diana Prince - ou do dilema de ser advogada criminalista de dia e feminista à noite

Por Laura de Azevedo Marques
Atualização:
Laura de Azevedo Marques. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Diana Prince é uma heroína da tradição greco-romana, de uma terra dominada por amazonas. Foi mandada para este nosso planeta para militar pela verdade e pela vida. É uma mulher, como todas, lutadora por essência.  E é também a Mulher Maravilha dos filmes e cartoons.

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Dos muitos eventos noticiados nos agitados últimos dias, o caso de Mariana Ferrer, de ampla cobertura e repercussão,  me despertou uma vontade que há muito não sentia: a de escrever em prosa.

Ao contrário do que tantas colegas incríveis (e absolutamente necessárias) fizeram, minha urgência não consiste em escancarar - apenas - a barbárie a que as mulheres brasileiras são submetidas, diariamente, no sistema judiciário. E fora dele.

Nas reflexões típicas de tempos pandêmicos, compartilho uma, angustiante, que me surgiu: a paradoxal vida de advogada criminal e feminista quando tratamos de casos de violência contra a mulher.

Desde que "me apaixonei pelo crime" (como meu pai carinhosamente apelidou a minha enveredada pelos caminhos do direito criminal), repito a mesma frase nos debates em que me meto: "melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente". Para uma amante da presunção de inocência, essa máxima deveria ser aplicada aos montes pelos Tribunais.

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Porém, sinceramente, sabemos que empiricamente assim nem sempre é.

Essa semana, atipicamente, o mantra de todo criminalista raiz foi entoado por um Magistrado, em sentença absolutória por ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade. E eu, jovem advogada, feminista desde sempre, me vi numa verdadeira encruzilhada.

Por um lado, a convicção axiológica, o compromisso com o pilar fundacional da advocacia criminal: o "in dubio pro reo". De outro, o soco no estômago, a revolta ao constatar o machismo estrutural consolidado no judiciário enquanto assistia às mídias da audiência do mesmo caso.

E aí o meu dilema: tão ou mais difícil que ser garantista no país do futebol, só mesmo ser mulher. Pior, mulher garantista.

Não sou muito boa com números. Mas logo me vi recorrendo a eles. E a cisão na alma só se agravou: no Brasil, atualmente, temos quase 254 mil presos preventivos, ou seja, sem culpa formada. Milhares de brasileiros que não sentiram nem o cheiro da presunção de inocência.

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Nesse mesmo Brasil, em média 180 mulheres por dia são estupradas e outras 1.890 foram mortas de forma violenta no primeiro semestre de 2020. Brasileiras que não viram nem a cor da igualdade de gênero.

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Assim como as aulas de aritmética, esses dígitos me causam arrepios.

Uma querida colega, por quem nutro verdadeira admiração, me disse esses dias: "Laura, a advocacia não deve ter gênero. Não podemos deixar as nossas pautas ideológicas se misturarem com o exercício da profissão". Ela deve ter razão. Mas, talvez, eu ainda precise aprender com Diana Prince como separar a minha identidade da autoimagem de Mulher-Maravilha.

No revezamento de armaduras, pego-me pensando que o devido processo legal aplicado ao acusado, em crimes contra a dignidade pessoal, precisa ser modulado para que também se considere a vítima. A aplicação das garantias de ampla defesa e contraditório deve servir, a bem da verdade, para proteger tanto réu quanto vítima. Só assim se alcança um processo justo aos dois - e, por consequência, à sociedade.

Diana e Mulher-Maravilha talvez possam, um dia, caber na mesma beca.

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Por enquanto, resta a árdua tarefa de defender aguerridamente o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência, a vida das mulheres, a equidade de gênero, o respeito às vítimas de violência, a máscara e o álcool gel.

Às que, assim como eu, vivem tal dupla jornada: resistimos. E resistiremos.

*Laura de Azevedo Marques, feminista e advogada criminalista do escritório Cavalcanti, Sion e Salles Advogados

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