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Sem confissão, sem acordo

Acordo de não persecução penal ainda gera insegurança aos investigados

Por Marco Antonio Chies Martins e Thaís Molina Pinheiro
Atualização:

A justiça penal brasileira está mudando e o antigo processo penal tradicional vem dando espaço à chamada justiça negocial. O mais novo capítulo dessa mudança é o acordo de não persecução penal ("ANPP"), introduzido em nosso Código de Processo Penal pelo tão falado Pacote Anticrime. Inspirado na experiência norte-americana de resolução de casos criminais, que busca a eficiência e a economia de recursos judiciais, o legislador brasileiro importou tal instituto que nada mais é do que um acordo firmado entre investigado e Ministério Público, em que o Estado abre mão de iniciar um processo criminal em troca do cumprimento de algumas medidas impostas ao investigado.

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Em levantamento feito em decisões judiciais proferidas por magistrados do Fórum Criminal da Barra Funda em São Paulo, o maior da América Latina, entre janeiro de 2019 e maio de 2020, verificou-se que dos 140 casos em que há menção ao ANPP, em 65 houve a proposta pelo Ministério Público. Em 91% destes houve aceitação da proposta, o que demonstra que há uma forte tendência dos investigados em renunciar à defesa em um processo criminal e aceitar uma pena mais branda, evitando o desgaste do processo e o peso de uma possível condenação.

É claro que o Ministério Público não pode oferecer o acordo em qualquer tipo de crime. Para tanto, existem alguns requisitos que devem ser cumpridos, como se tratar de conduta cometida sem violência ou grave ameaça cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. O requisito que mais chama atenção e que vem causando grande discussão no mundo jurídico diz respeito à necessidade de confissão da conduta ilícita, em especial o momento em que isso seria exigido e as suas consequências para além do ANPP.

Marco Antonio Chies Martins e Thaís Molina Pinheiro. Foto: Acervo Pessoal

O Código de Processo Penal não estabelece com precisão o momento em que deve ser realizada a confissão, o que enseja duas interpretações. A primeira é que a confissão da prática de ilícito deve ocorrer ainda na fase de investigação policial, uma vez que o Ministério Público só poderia propor o acordo a alguém que já tivesse confessado. A segunda é que a confissão poderá ser feita perante o Ministério Público, após o encerramento das investigações.

O Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais (CAOcrim) do Estado de São Paulo elaborou um roteiro para orientar os promotores estaduais sobre o novo instituto. O próprio documento se contradiz quanto à questão, ora estabelecendo que a confissão feita ao Ministério Público em um acordo independe de negativa de confissão em interrogatório no inquérito policial, ora afirmando que a confissão durante o inquérito policial é requisito de qualquer acordo.

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A pesquisa realizada nas decisões já proferidas demonstra uma tendência de dispensa da confissão em fase de investigação. Nos únicos dois casos em que os promotores de justiça utilizaram a ausência de confissão na fase policial como parâmetro para obstar a oferta de ANPP, havia outros requisitos objetivos que impediam o ANPP, como a reincidência ou adesão nos últimos 5 anos a outra espécie de acordo penal.

Vale ressaltar que em 70% dos acordos propostos, não houve confissão na fase policial. Ou seja, mesmo o investigado permanecendo em silêncio ou dizendo que era inocente perante o Delegado de Polícia, o Ministério Público propôs o acordo de não persecução penal após a confissão realizada em reunião específica ou em audiência.

Diante de um cenário em que a confissão prévia não é exigida, chama a atenção o fato do roteiro elaborado pelo Caocrim indicar aos promotores que orientem os delegados de polícia para, no momento de interrogatório policial, informarem aos investigados sobre a possibilidade de proposição de ANPP e seus requisitos, em especial a confissão.

Esse tipo de diretiva, se colocada em prática, representaria um forte atentado ao direito de defesa. Eventual orientação da autoridade policial sobre a necessidade de confissão durante a fase policial para a obtenção de benefícios do ANPP pode compelir a pessoa investigada, que raramente está acompanhada de um defensor neste momento, a realizar uma confissão prematura, desnecessária para o oferecimento do ANPP e que, por si só, não garante a propositura do acordo pelo Ministério Público.

Soma-se a essa insegurança, o fato de que admitir um crime tem efeitos que ultrapassam a esfera criminal. O ANPP abrange apenas os efeitos criminais relacionados à conduta. Diante disso é possível que uma confissão venha a ser utilizada em outras áreas do direito, como cível e administrativa. A título de exemplo, há quem diria que eventual confissão de um crime ambiental poderia ser utilizada no processo administrativo como um dos motivos para a condenação da empresa.

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Como o acordo de não persecução penal é novo, ainda não se sabe qual será o entendimento dos tribunais quanto à sua utilização em outras esferas. De qualquer forma, não se descarta essa possibilidade, principalmente tendo em vista a experiência tida com relação aos acordos de colaboração premiada.

*Marco Antonio Chies Martins é advogado criminalista, pós graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

Thaís Molina Pinheiro é advogada criminalista, pós graduada em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

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