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Sem açúcar e sem afeto

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Não bastassem a paranoia da ômicron, a situação da natureza brasileira vilipendiada, a compreensível onda de desalento que acomete o Brasil e sai a notícia de que Chico Buarque nunca mais cantará sua música "Com açúcar e com afeto".

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Essa patrulha retroativa já focou Monteiro Lobato, que seria racista, quis incendiar a estátua de Borba Gato, faz pichações e demolições morais.

É impossível reescrever integralmente a História, à luz das tendências contemporâneas. A música de Chico atendeu a um pedido de Nara, sua mais emblemática intérprete. Ela queria algo que lembrasse a condição da mulher que suportava tudo e se conformava com a situação de aparente desvantagem, porque o amor era suficiente ao enfrentamento das vicissitudes.

É uma belíssima canção. Narra o carinho do preparo do "doce predileto" do seu amor, feito "com açúcar e com afeto", com o intuito de fazê-lo parar em casa. Qual o que? Ele vestia o terno mais bonito e "ia em busca do salário" para poder sustentar a mulher. No caminho da oficina, existia um bar em cada esquina para ele comemorar... sei lá o que!..

Alguém ia sentar junto e ele puxava assunto, ficava imerso em conversas não só de futebol, mas com as meninas de pernas coloridas pelo sol. Em seguida, já animado pelo álcool, ele passa a cantar. Lembra-se de sambas antigos. Só volta para casa quando cansado, arrependido. Pede perdão e diz que vai mudar. E ela perdoa! Vai esquentar seu prato de comida, dá um beijo em seu retrato e abre os braços para ele.

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Isso deve ter ocorrido com frequência. Não pode ser simplesmente extraído de um universo que fenomenicamente existiu. A realidade não se deleta como no mundo virtual. Eram assim as relações, nem todas. Mas uma boa parte. Sempre a recordar que os homens eram educados por mulheres, suas mães. Estas incutiam nos filhos machos a vocação hegemônica, o mando, a autoridade.

Além da beleza da canção, feita especialmente para Nara, a musa da bossa-nova, é um depoimento de tempos idos e vividos. O fanfarrão era pueril, voltava para a mulher arrependido. Prometia mudar de vida.

Ela era uma "Amélia", mulher de verdade. Ao vê-lo "assim cansado, maltrapilho e maltratado", seu coração se enternecia.

Não é bonita a mensagem do arrependimento e do perdão? Isso não conta mais do que reafirmar o dogma da igualdade, hoje indiscutível?

Essa música e tantas outras, hoje "canceladas", fazem parte do percurso humano pelo planeta. São depoimentos de uma época. Devem servir para mostrar que agora impera um outro pensamento. Mas não serem extirpadas do nosso patrimônio melódico.

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Se levarmos a sério a política de só veicular o que está de acordo com os padrões de nossos dias, vamos ter de eliminar páginas saborosíssimas, que impregnaram nossa mente e de lá se recusam a sair. Muitas delas eternizadas na voz suave e perene de Nara Leão.

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Teríamos de banir a "Rita", que se vingou levando o amor e não deixou herança. Levou os planos, os enganos, os vinte anos. Deixou mudo o violão. Isso é papel que se faça? E aquele que sumiu quando a mulher mais precisava dele, o que a leva a perguntar "Onde é que você estava?".

O "Ela desatinou" não depõe contra a alienação? Continuar sambando em plena Quarta Feira de Cinzas?

Em "Trocando em miúdos" ela fala que não vai dar a ele o enorme prazer de vê-la chorar, que esqueça a esperança de tudo se ajeitar... nem cobrar pelo estrago em seu peito tão dilacerado. Não é mais uma vítima daquilo que se acabou e que um dia se chamou lar, do qual ela sai com a impressão de que já foi tarde?

"O que será" ou à flor da pele, não é um lamento de alma ferida, que todos os unguentos não conseguem curar?  O que pode queimar por dentro e arder no peito? Não é a mulher sofredora?

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No "Baioque", ela diz que não quer seguir definhando de sol a sol. Que vida é essa? A música "Vence na vida quem diz sim", desde o nome já é um desafio. O refrão é "diz que sim", a todas as situações ambíguas. "Se te chamam vagabunda", diz que sim...

E "Homenagem ao malandro"? Não é o reconhecimento de que ao macho se reserva o papel principal e à fêmea a subalternidade?

Em "Olhos nos olhos", a mulher é abandonada, posta para fora e "de costume", obedeceu. Demorou para se refazer: tantas lágrimas rolaram... Mas diz que "a casa é sempre sua", está disposta a recebê-lo de novo.

Enfim, uma breve e superficial passagem por apenas um álbum de Nara, mostra que o "politicamente correto" faria uma proveitosa colheita saneadora de músicas que integram nosso tesouro melódico, sem nada acrescentar para suprir a falta que farão em nossos corações.

Vamos deixar "com açúcar e com afeto" como testemunho de uma era. Tudo fica muito triste quando "sem açúcar e sem afeto".

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*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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