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Rezar obedecer

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Imperdível, na Netflix, um documentário impressionante. Uma dissidência da Igreja Mórmon dos Santos dos Últimos Dias que insistiu na prática da poligamia conseguiu conquistar milhares de adeptos. A pregação fundamentalista insistia num mantra: docilidade, submissão, subserviência. Isso para as mulheres que, a partir dos catorze anos, eram entregues a homens mais velhos, que as esposavam e faziam procriar.

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O fundador da seita chegou a possuir dezenas de mulheres e mais de uma centena de filhos. A mulher era considerada uma comodity, pois apenas servia para gerar filhos. O "profeta" falava em nome de Deus e conseguia manter todo o rebanho afinado e fidelíssimo às suas prédicas.

Dentro da cidade em que se estabeleceram e formaram sólida comunidade, não entrava jornal nem TV. As propriedades não eram privadas, mas tudo pertencia à Igreja. Era o profeta quem escolhia os maridos para as meninas e também aquelas que ele reservava para ele.

A salvação só estaria garantida por aqueles que tivessem "ao menos" três mulheres e dezenas de filhos. Como a distribuição das noivas era atribuição do Profeta, que falava em nome do Criador, não havia a quem recorrer.

Todos acreditavam que ele não morreria. Ou que ressuscitaria como Jesus Cristo. Ao falecer, com quase noventa anos, foi sucedido por um dos muitos filhos, aquele que se aproximou dele e captou sua confiança. O filho escolheu para si as mulheres mais novas de seu pai. Alguns dos sub-líderes estranharam. Como é que se poderia casar com a própria mãe?

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Ao detectar qualquer resistência ao seu comando, o novo Profeta fazia um expurgo. Certa feita chamou vinte e um de seus fiéis durante uma cerimônia religiosa à qual estavam presentes três mil e quinhentas pessoas. Pediu a cada um deles permanecesse em pé. Ao final, disse que eles haviam sido contaminados, eram satânicos e seriam expulsos da comunidade.

Suas famílias foram redistribuídas para outros que rezavam a sua cartilha e ainda obteve o consentimento de toda a assembleia, a quem pediu levantasse a mão se estivesse a favor da "vontade de Deus".

Incrível que isso tenha acontecido nos Estados Unidos e prosperado no final do século passado e durante as duas primeiras décadas deste século 21. A lavagem cerebral era tamanha, que ninguém acreditava não fosse ele um imortal, ungido pela divindade para edificar numa nova humanidade.

Quando duas das meninas que foram estupradas e obrigadas a casar com homens muito mais velhos conseguiram fugir, graças ao jornalismo investigativo tentou-se interromper a surreal insanidade. Pois até as autoridades de Utah já estavam comprometidas, diante do poderio econômico do Profeta. Como não havia propriedade privada, tudo o que se produzia era da Igreja e, portanto, dele.

Acuado, migrou para o Texas, onde construiu imenso Templo, próximo a Eldorado. Começou a levar crianças para lá, quase todas meninas. Era a sua matéria-prima para arrecadar dinheiro. As suas vinculações ficaram cada vez mais intensas, porque investiu em empresas da construção civil e ganhava todas as concorrências: sua mão-de-obra era escrava. Ninguém tinha salário, que era destinado integralmente para a Igreja.

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É bom que se assista ao documentário, na minissérie com poucos episódios, para se ter a ideia do risco existente em qualquer espécie de fanatismo. Lembra bastante aquela contaminação de consciência que o Brasil enfrenta hoje. A cegueira, a surdez, a incapacidade de enxergar fora daquilo que o líder prega, pelos mais diversos motivos impede que a lucidez prospere.

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Embora condenado a cem anos de prisão, ele continuou a enviar mensagens gravadas em celulares e manteve a integridade de sua Igreja fundamentalista poligâmica, um poderio econômico-financeiro que obteve a conivência e até a cumplicidade de autoridades governamentais. Todos os que tiram proveito de uma situação esdrúxula a defendem com unhas e dentes. Algo que é visível em nossos dias nesta terra de iletrados afeiçoados às mais exóticas narrativas e aos escolarizados que se valem da situação para alavancar seus negócios e manter a ignorância apreensiva e submissa.

Rezar e obedecer! Nada de livre-arbítrio! Obediência cega, submissão absoluta, com a promessa de que na vida eterna os sacrifícios serão compensados. Alguma coisa disso tem qualquer semelhança com o que o Brasil de hoje vivencia? Pode ser mera coincidência. Ou não!

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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