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Retrocesso autoritário

Por Eduardo Mendonça
Atualização:
Eduardo Mendonça. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O mundo tem debatido maneiras construtivas e democráticas de combater a proliferação de notícias falsas e outros conteúdos tóxicos na internet. No Brasil, porém, parece haver quem pense que o problema seja os antídotos.

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Por meio da minuta de um possível novo decreto, veio a público a  intenção do governo de regulamentar novamente o Marco Civil da Internet. O argumento é que haveria abuso das redes sociais e outras plataformas na remoção de conteúdos e contas com fundamento na violação aos seus termos de uso, como aqueles que buscam coibir a desinformação, fraudes e a divulgação de práticas que possam causar dano à saúde e segurança dos usuários. Nos termos da minuta, somente seria possível remover esse tipo de material após uma determinação do Judiciário, ressalvadas algumas hipóteses taxativamente previstas, de que seriam exemplos conteúdos de abuso infantil, atos de discriminação violenta ou que possam ser enquadrados em certos crimes. Com premissas similares, parlamentares ligados ao governo já apresentaram mais de uma dezena de projetos de lei, buscando proibir as plataformas de aplicarem suas políticas sem prévia autorização judicial.

A suposição de que isso seja libertário não resiste a uma observação mais atenta. A pretexto de proteger a liberdade de expressão, seria criada uma perigosa modalidade de controle administrativo sobre as ideias, sem paralelo em países democráticos. Na prática, pela minuta do decreto, o Poder Executivo assumiria o papel de certificador oficial da verdade, dotado da prerrogativa de multar e interferir em ambientes privados para blindar os discursos que lhe sejam favoráveis ou com os quais esteja alinhado, ainda quando violem as regras aceitas por seus respectivos usuários. A título de exemplo, se estivesse em vigor, a medida se prestaria a impedir a remoção de postagens que desestimulem a vacinação com base em riscos fantasiosos, sem qualquer amparo no conhecimento científico.

Além de esbarrar no senso comum, a proposta tampouco passa no teste de adequação à Constituição. Em primeiro lugar, há ofensa ao princípio da legalidade. Embora se apresente como suposta regulamentação, a verdade é que o Marco Civil da Internet não prevê as restrições introduzidas pela minuta de decreto. Mais do que isso, o tema da desinformação é objeto de projetos de lei em debate no Congresso Nacional, justamente por não ter sido objeto de disciplina no Marco Civil. O que se tem, portanto, é a proposta de criação de novas e polêmicas regras não apenas sem previsão legal, mas em franco atropelo ao debate em curso no Legislativo.

Em segundo lugar, a medida violaria gravemente a liberdade de iniciativa e o núcleo essencial da própria liberdade de expressão, que não se confunde com a ideia simplista de que espaços privados não possam ter regras de convivência. Os termos de uso de cada plataforma definem o ambiente que ela se propõe a ser, à disposição dos usuários que aceitem as diretrizes comuns. A título de exemplo, algumas plataformas proíbem conteúdos pornográficos, a comercialização de produtos ou representações gráficas de violência. Não porque essas práticas sejam necessariamente ilícitas, mas porque não se encaixam na experiência que se deseja oferecer. Em se tratando de desinformação, fraudes e outros conteúdos perigosos, as políticas internas espelham a preocupação, amplamente disseminada, de se evitar danos potencialmente graves às pessoas e à própria democracia.

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Quando essas regras são aplicadas, o usuário é comunicado e pode questionar a remoção. Nada é oculto e é comum que casos polêmicos despertem acesa discussão pública. Ainda que se possa discutir o aprimoramento do sistema, nada indica que se esteja diante de práticas de censura. Pelo contrário, os relatórios de transparência divulgados pelas principais plataformas indicam que as remoções alcançam fração mínima do conteúdo gerado pelos usuários e, em sua maioria, dizem respeito a violações objetivamente constatáveis, como contas falsas e propagação de spam. Vale dizer: onde certa narrativa sugere um filtro supostamente ideológico, o que os dados demonstram é uma atuação parcimoniosa das plataformas, já pautada pela liberdade de expressão.

De toda forma, pelo modelo atualmente em vigor no Brasil, caso um usuário se sinta injustiçado pela aplicação dos termos de uso, pode levar a questão ao Poder Judiciário. O controle jurisdicional é essencial nos casos difíceis, mas seria impossível e contraproducente submeter previamente ao Judiciário cada um dos incidentes em que políticas são violadas. Na escala em que novos conteúdos são gerados na internet, isso resultaria na existência permanente de uma infinidade de material tóxico, afugentando e silenciando a maioria esmagadora de usuários que cumprem as regras e têm a expectativa legítima de que elas sejam cumpridas. Igualmente afugentados seriam os anunciantes, em prejuízo de milhões de pessoas que se valem da internet para promover seus negócios e gerar renda. Também aqui, é difícil imaginar o fundamento pelo qual empresas privadas seriam obrigadas a amplificar discursos nocivos, depreciar a si mesmas e deixar de entregar o que prometeram aos seus usuários.

É preciso ignorar a história para enxergar avanço na fórmula em que o Poder Executivo passa a dispor do poder de aplicar pesadas sanções para interferir em ambientes privados de discussão e blindar determinados discursos - inclusive nos casos, frequentes, em que seus atos ou omissões são o próprio objeto do debate. O ponto é ainda mais sensível no Brasil, que tem notória tradição em matéria de interferência administrativa sobre a liberdade de expressão. O debate pode e deve avançar sem esse retrocesso autoritário.

*Eduardo Mendonça é professor titular de direito constitucional e de direito digital do Centro Universitário de Brasília e sócio do escritório BFBM, com atuação em temas ligados à liberdade de expressão na internet

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