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Retroatividade da norma mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador

Por Rogerio Marinho
Atualização:
Rogerio Marinho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A retroatividade de lei mais benéfica é um princípio geral de direito, previsto na Constituição Federal (CF, art. 5°, XL), e, também, no Código Tributário Nacional (CTN), mais especificamente no art. 106[1], que prevê a possibilidade expressa de aplicação da lei a fatos pretéritos, quando se tratar de norma que beneficie o contribuinte.

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Sobre os princípios gerais de direito, Miguel Reale[2] é preciso ao lecionar que "são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas". E o autor prossegue em sua lição, arrematando que alguns dos princípios gerais de direito "se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para a proteção dos direitos adquiridos, etc".

Ou seja, os princípios gerais de direito devem condicionar a aplicação do direito em suas mais diversas searas, de forma horizontal e independentemente da natureza do direito material envolvido.

Essa aplicabilidade ampla, não há dúvida, deve ser reconhecida em relação à retroatividade da norma mais benéfica, dada a relevância social e jurídica de tal princípio geral de direito. Sobre ele, José Afonso da Silva[3] ensina que "se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente".

A mesma circunstância, utilizada pelo insigne constitucionalista para justificar a aplicação da retroatividade da lei mais benéfica no Direito Penal, impõe, igualmente, a sua aplicação nos demais ramos do direito e, mais especificamente, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

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Isso porque, como dito acima, a Constituição Federal consagra, no art. 5º, XL, a retroatividade da norma mais benigna como princípio geral de direito, exatamente no intuito de evitar que os cidadãos sejam prejudicados com a aplicação ou cumprimento de pena ou sanção por fato que norma posterior passou a considerar lícito.

Essa garantia fundamental, aliás, está diretamente ligada aos princípios da razoabilidade, legalidade e mesmo ao dever de coerência que deve ser observado pela Administração Pública e, de forma geral, pelo próprio Estado. Afinal, como manter a aplicação de punição posteriormente reconhecida como desnecessária ou irrazoável pelo próprio ente público normatizador?

Nesse sentido, as lições dos renomados administrativistas espanhóis Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández[4] demonstram que, naquele país, a retroatividade da norma mais benéfica tem aplicabilidade admitida, já há muito, em sede de Direito Administrativo Sancionador.

Também no Brasil, portanto, é impositivo que se reconheça, de forma mais ampla e geral, principalmente pelos Tribunais, a aplicação da retroatividade da norma mais benigna no campo do Direito Administrativo Sancionador, exatamente por se tratar de um princípio geral de direito, que não pode ficar adstrito somente à seara criminal. A lógica do art. 5º, XL, da Constituição Federal também deve ser aplicada no âmbito do Processo Administrativo Sancionador, pois a literalidade do dispositivo constitucional não induz que a retroação da norma mais benéfica se limita ao Direito Penal, mas sim que se mesmo o ramo mais rigoroso do ordenamento jurídico, destinado à tutela dos bens jurídicos mais importantes, admite a retroação de norma mais benéfica ao acusado, as normas sancionatórias do Direito Administrativo, quando mais benéficas ao administrado, também retroagirão.

Corrobora este raciocínio o julgado do Supremo Tribunal Federal nos autos do Mandado de Segurança n° 23.262/DF, no qual se reconheceu que o princípio da presunção da inocência (LVII, do art. 5º da CF) se aplica aos processos administrativos sancionadores[5].

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Especificamente em relação à retroatividade da norma mais benéfica, a jurisprudência dos tribunais pátrios ainda caminha de forma titubeante no sentido de admitir a sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão relatada pela Ministra Regina Helena Costa, já decidiu nesse exato sentido[6] (STJ, RMS 37.031/SP, 1ª Turma, j. em 8.2.2018).

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No voto proferido no referido julgamento, a Ministra consignou que "a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa".

Nesse mesmo sentido foi a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial nº 1.153.083/MT, sob relatoria do Ministro Sérgio Kukina, da Primeira Turma[7].

Em julgamento realizado no final de 2020, a Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, nos autos da apelação nº 0103067-55.2013.4.02.5101, de relatoria do Desembargador Federal Sérgio Schwaitzer, reconheceu que a "jurisprudência vem entendendo que o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da CF/88, poderá ser aplicado ao Direito Administrativo Sancionador", bem como que "tal conclusão privilegia o princípio da igualdade entre os administrados e, igualmente, busca evitar situações desarrazoadas e incoerentes".

Como se vê, a aplicação do princípio da retroatividade da norma mais benéfica, também no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, vem sendo paulatinamente reconhecida pelos tribunais brasileiros, apesar de ainda existirem diversas decisões judiciais que negam aos cidadãos o direito de ver aplicada retroativamente norma que lhe seja mais favorável.

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É indispensável, portanto, que os Tribunais brasileiros avancem no reconhecimento da aplicação retroativa da norma mais benigna, o que representará, em nossa opinião, grande avanço em favor dos cidadãos, que ainda se veem, em muitas ocasiões, obrigados a dar cumprimento a sanções administrativas aplicadas em razão de fatos posteriormente reconhecidos, pela própria Administração Pública, como regulares. Tratar-se-ia, pois, de mais um passo no sentido do estabelecimento de barreiras, pelo Poder Judiciário, que permitam um melhor controle da legalidade e da razoabilidade dos atos administrativos.

*Rogerio Marinho, mestrando em Ciências Jurídico Políticas pela Universidade Portucalense/Porto; pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes; advogado

[1] "Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:(...) c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática."

[2] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 305.

[3] Silva, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 138).

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[4] "La regla de irretroactividad de los Reglamentos, así establecida, admitía, sin embargo, algunas modulaciones en casos especiales. Así, por ejemplo, tratándose de disposiciones meramente aclaratorias e interpretativas, cuyos efectos se conviene en referir al momento en que se dictó la norma aclarada o interpretada (sentencias de 7 de junio de 1966 y 24 de septiembre de 1969), por suponer que la aclaración o interpretación carece de contenido innovativo, lo cual no siempre es exacto (si no hay un quid novum, ¿para qué se dicta la norma?) y suele dar lugar a frecuentes abusos.

Ha sido también habitual aceptar siempre el alcance retroactivo de las normas de organización y procedimiento (sentencias de 26 de junio de 1888, 26 de junio de 1895 y 29 de septiembre de 1924, por ejemplo), por entender que no declaran derecho alguno en favor de la parte y que, por tanto, tampoco pueden perjudicarla (sentencia de 19 de noviembre de 1953 y Dictamen del Consejo de Estado de 31 de marzo de 1966, aunque la Disposición Transitoria 2ª LPC dispuso otra cosa) y, por supuesto, como ya notamos, de los Reglamentos in bonus o favorables para los ciudadanos, especialmente de los que disminuyen o extinguen las sanciones según el criterio del artículo 2.2 CP, como hoy dispone el artículo 128.2 LPC y sentencias de 10 de marzo, 29 de mayo de 1998, 27 de octubre de 2001, etc". (ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ,Tomás-Ramón, Curso de Derecho Administrativo. I. 2013, Thomson Reuters (legal) Limited).

[5] "II - "No julgamento do MS 23.262/DF, o Órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal reafirmou seu entendimento de que o princípio da presunção de inocência, insculpido no inciso LVII do art. 5º da Constituição de 1988, se aplica aos processos administrativos sancionadores, em que pese o fato de o texto constitucional fazer referência à "sentença penal". Esse mesmo raciocínio é de ser aplicado ao inciso XL do mesmo artigo 5º, que faz referência à "sentença penal". Esse mesmo raciocínio é de ser aplicado ao inciso XL do mesmo artigo 5º, que faz referência apenas à "lei penal". Resposta: sim, pelos fundamentos de que fiz uso ao longo do presente parecer e que resumi na resposta anterior. [...]".

[6] "ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI. "DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.  (...) III - Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. IV - Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais. (...) VI - Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido."

[7] "ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE.

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ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC.

  1. O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente.
  2. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Recurso especial parcialmente provido".

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