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Responsabilidade social corporativa, direitos humanos e o garoto torturado em São Paulo

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Por Gabriela Shizue Soares de Araujo e Flavio de Leão Bastos Pereira
Atualização:
Flavio de Leão Bastos Pereira e Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

As recentes notícias divulgadas sobre um supermercado de São Paulo no qual um jovem negro, após supostamente ter sido flagrado tentando furtar chocolates, foi amarrado, despido e torturado por seguranças terceirizados, além de causar espanto e comoção na sociedade pela revelação de um crime hediondo, isto é, a tortura, conduz a algumas reflexões importantes sobre o papel das corporações no cenário global atual.

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Mesmo que o jovem tenha de fato sido flagrado cometendo furto de um chocolate, não deixa de ainda assim ser titular de direitos humanos fundamentais, como o acesso ao devido processo legal e à ampla defesa no curso de um processo criminal, sendo completamente inadmissível, em um Estado Democrático de Direito, que particulares ou até mesmo corporações privadas se sintam imbuídos do poder medieval de "fazer justiça com as próprias mãos".

Note-se que, no caso em comento, já surgem novas notícias sobre torturas anteriormente praticadas no interior da mesma empresa, o que evidencia que funcionários e terceirizados sentem-se livres ou até mesmo incentivados à prática de sistemáticas violações dos direitos humanos no exercício de suas funções e - quiçá - em nome da empresa.

Eis porque é preciso que se atribua as devidas responsabilidades às empresas pela escolha que realizam e suas consequências, seja na contratação de serviços terceirizados, seja nas ações praticadas por seus funcionários em seu nome, especialmente quando violam direitos humanos.

Não se pode ignorar que a própria evolução civilizatória das sociedades democráticas vem acentuando de forma crescente a relação e dependência das atividades empreendedoras com relação aos direitos humanos, sua proteção e, sobretudo, sua promoção.

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A denominada Responsabilidade Social Corporativa (RSC) teve um recrudescimento na década de 90 com a chamada globalização corporativa e sua expansão; com o aumento do poderio econômico das empresas e, por via de consequência, maior poder de influência sobre o Estado, o qual, se desde o século XVII era o principal destinatário dos Direitos Humanos, passa agora a dividir tal polo com as corporações.

A reputação empresarial e a continuidade de um negócio com inserção e reconhecimento no mercado global serão cada vez mais condicionados à observância aos direitos humanos em todas as suas dimensões: do respeito aos direitos individuais, passando pela promoção e ampliação dos direitos sociais, e incluindo, ainda, o respeito aos bens dos quais depende toda a humanidade, como a paz e o meio-ambiente sustentável.

A forte reação de mercados consumidores mais conscientes, como o europeu, por exemplo, pode significar o fim de uma corporação que não respeite os direitos humanos.

Pensando sob o ponto de vista das democracias contemporâneas, que demandam o modelo participativo para sua sobrevivência, as empresas e a sociedade passam a assumir cada vez mais a responsabilidade de defesa, promoção e conscientização coletiva na proteção e evolução dos direitos humanos. Ou seja, quem compra produtos de uma empresa que utiliza trabalho escravo, por exemplo, naturalmente acaba sendo visto pela coletividade como cúmplice desse crime.

Em consequência disso, no plano internacional, são diversas as iniciativas que impõem aos players do mercado a adoção de normas de compliance também em relação aos direitos humanos e que tangenciam suas várias modalidades, como o respeito e a promoção de igualdade de gênero; o combate ao racismo e à discriminação de qualquer espécie no ambiente corporativo; a harmonização do plano de negócio com a sustentabilidade; a adoção de medidas reparatórias após a imposição de danos à sociedade e a aproximação com a comunidade.

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Nessa esteira, não são poucos os documentos internacionais que asseguram a nova visão sobre posturas e condutas de conformidade social empresarial, podendo ser mencionados, a título apenas exemplificativo, o Pacto Global (2005); a publicação do relatório Proteger, Respeitar e Remediar: Um Marco sobre Empresas e Direitos Humanos (2008); a adoção dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas (2011); o selo ISO 26000 e as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais (2011); e, no plano nacional, o Decreto 9.471/2018.

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Vale dizer: as corporações devem atuar como atores cujas projeções vão muito além da busca pelo lucro a qualquer custo; devem ser elementos transformadores do ambiente que os cerca, não apenas efetivando sua função social já consagrada pela Constituição de 1988, mas concretizando sua função de agente propagador da solidariedade.

No Brasil, a sociedade se torna cada dia mais sensível a questões como trabalho escravo, infantil, além da preocupação com relação à destruição do ecossistema, fenômeno potencializado pelas redes sociais.

Houve recentemente uma grande comoção social com relação a maus-tratos perpetrados contra um cachorrinho, por funcionários de uma rede de supermercados localizada na cidade de Osasco, em São Paulo. A rede de supermercados foi compelida pelo clamor público a firmar termo de ajuste de conduta com o Ministério Público e a depositar o valor de R$ 1 milhão em um fundo destinado aos animais abandonados da cidade, além de diversas outras medidas que foram anunciadas, inclusive diretrizes de comportamento para funcionários e terceirizados.

Pois bem. A expectativa é que a sociedade brasileira demonstre a mesma comoção na proteção de direitos humanos violados, não apenas no caso específico do adolescente torturado e que foi mencionado no início deste artigo, mas sempre que uma empresa ou corporação agir em desacordo ou se omitir na proteção dos direitos humanos.

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Tem-se notícias de que o adolescente, em razão de ameaças sofridas pela família, foi encaminhado a um abrigo da prefeitura, e os seguranças acusados de torturá-lo estão presos preventivamente. Mas e a empresa? Como responderá? Como será possível reparar o dano à sociedade provocado por uma prática violadora aos direitos humanos que aparenta ser institucional?

Esse sim é um caso, à parte de qualquer polarização partidária, em que se pode dizer que há uma luta da civilização contra a barbárie! A questão é: de que lado vamos ficar?

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, advogada, professora de direitos humanos e coordenadora da extensão na Escola Paulista de Direito, é coordenadora do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.

*Flavio de Leão Bastos Pereira, professor de direitos humanos no Mackenzie, é coordenador do Núcleo Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP e membro do rol de especialistas da Academia Internacional dos Princípios de Nuremberg, na Alemanha.

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