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Respeito aos contratos. Quando ninguém paga a conta, alguém paga

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Por Marcos Seiiti Abe
Atualização:
Marcos Seiiti Abe. FOTO: DIVULGAÇÃO  

É impossível dissociar os contratos e sua interpretação do sistema em que estamos inseridos, de eventos externos, de nossas concepções filosóficas e de nosso abraço ideológico enquanto nação.

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Muito tem se falado sobre o instituto da força maior e seu papel regulador em momentos críticos como o que vivemos hoje por força da maior crise de saúde e econômica de nossa geração.

O Art. 393 do Código Civil estabelece que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."

É evidente que até o momento a pandemia da covid-19 não pôde ser evitada. Mas em qual extensão seus efeitos danosos no cumprimento de contratos poderiam ser impedidos?

É fato que toda a cadeia produtiva e de serviços foi afetada, em escala global e sem precedentes na história recente, gerando atrasos e suspensão no fornecimento de matérias-primas, produtos acabados, aquisição de empresas, prestação de serviços e toda uma gama incontável de manifestações de vontade que não puderam se ver viabilizadas, total ou parcialmente.

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A interpretação jurídica pode se dar no sentido de que os contratantes, ainda que diante do fato inevitável, poderiam impedir seus efeitos. Deveriam ter adotado todas as medidas necessárias para impedir o inadimplemento contratual. Ainda que com a pandemia, os estoques, a reserva de caixa e planos de contingência existiriam para mitigar ou evitar o descumprimento do que pactuado, ainda que comprometido o lucro daquele que prometeu cumprir com determinada avença.

Outra interpretação, em sentido oposto, é no sentido de que os fatos, além de inevitáveis, não poderiam ser impedidos, mesmo com os melhores esforços, planejamento e honradez do contratante em cumprir com aquilo que pactuou.

Verdade seja dita, a interpretação se torna necessária única e exclusivamente por força da existência de um prejuízo e de quem deverá suportá-lo.

Seria muito simplista deixar de mencionar que cada contrato deve ser analisado com a devida atenção às suas cláusulas específicas, notadamente aquelas relacionadas à definição de força maior ou de responsabilização expressa pelo cumprimento contratual nos termos do artigo 393 do Código Civil.

O fato é que, em qualquer cenário, continuará a existir um prejuízo, que não desaparecerá pela vontade de um juiz, um legislador ou das partes contratantes. A depender da interpretação, o prejuízo pendulará em favor ou desfavor de uma das partes, necessariamente em detrimento da outra. Alguém perderá, ou todos, em alguma medida, perderão.

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Em países com jurisprudência consolidada e com uma cultura clara em favor da observância dos contratos, em que a manifestação de vontade tende a prevalecer sobre eventos imprevistos, ou, ao contrário, em culturas de flexibilização do pactuado por força de eventos imprevistos, a inevitabilidade ganha diferentes interpretações.  

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Podemos tomar como exemplo um interessante precedente da jurisprudência americana durante a pandemia da gripe espanhola, em 1918.

A Corte Suprema da Carolina do Sul, no precedente Poston v. Western Union Telegraph Co., sentenciou uma causa em que se alegava a responsabilidade pelo atraso da Western Union na entrega de um telegrama, o que teria gerado à outra parte a perda de uma oportunidade de venda. O júri entendeu "inexistir negligência na transmissão e entrega das mensagens, mas que o atraso, uma vez demonstrado, decorria somente de uma epidemia de influenza", entendendo, portanto, que a Western Union não poderia se arvorar na epidemia como justificativa para a demora na entrega do telegrama.

Ao longo da história, a sociedade americana voltou-se para uma interpretação bastante restritiva e frugal quanto à "força maior". O liberalismo americano, na prática, tende a empurrar a responsabilidade para as partes contratantes, que devem observar os termos do que foi contratado, sem intervenções externas, seja do Estado ou de eventos incertos. Trata-se de um viés interpretativo bastante restrito do que é ou não evitável.

Muitos sustentam que o Brasil adotou um caminho oposto, em que o Estado, através do Judiciário e da legislação aplicável, permite uma interpretação mais flexível e, portanto, mais justa, em que cada caso é analisado em sua individualidade para que a inevitabilidade seja analisada.

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Nada mais falso. Quem julga o que é ou não inevitável é, na grande maioria dos casos, um juiz influenciado por suas crenças, ideologia, vivências pessoais aprendidas na infância e até mesmo sua realidade diante de uma carga massacrante de trabalho, e que não permite o distanciamento intelectual ideal.

Encontramos precedentes em nossas Cortes a demonstrar uma esquizofrenia na compreensão do papel do Estado na interpretação de contratos. Não sabemos enquanto cidadãos, enquanto nação, se somos liberais, socialistas ou o que seja.

Somos uma democracia nova, sofrendo com radicalismos e diversionismos de dirigentes, que dizem adotar uma política de Estado, mas, na prática, não adotam nenhuma, somente atestam nosso estágio e o quanto precisamos ainda progredir para que tenhamos maior segurança e previsibilidade naquilo que interpretamos e enxergamos enquanto sociedade ao ler uma manifestação de vontades.

Qualquer que seja o caminho, somente quando entendermos quem somos enquanto nação, poderemos contar com maior segurança jurídica e previsibilidade de como deverão ser interpretados nossos contratos.

Até lá, a receita é defender a qualquer custo nossas instituições democráticas e a continuidade desse percurso doloroso, inseguro, lento mas gerador futuro de maior previsibilidade e segurança.

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Ou pagamos a conta como nação e construímos nossa identidade democrática, ou continuaremos a pagar a conta de não saber até o próximo século, ou até a próxima pandemia, como interpretamos contratos, como entendemos nossos combinados entre particulares, entre público e privado e entre cidadãos de bem.    

*Marcos Seiiti Abe é advogado, especialista em contratos corporativos, fusões e aquisições, sócio do escritório Abe Giovanini Advogados

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