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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Requisição de bens e serviços de saúde em tempos de pandemia

Por Márcio Fernando Elias Rosa e Yuri Maciel Araujo
Atualização:
Márcio Fernando Elias Rosa e Yuri Maciel Araujo. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

I. Introdução 

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O noticiário não poderia ser mais alarmante. Com a rápida progressão da pandemia do novo coronavírus (covid-19), autoridades públicas e sociedade civil encontram-se inteiramente mobilizadas para o enfrentamento da maior crise sanitária já vivenciada desde o último século. O isolamento social é reforçado, hospitais de campanha são erguidos, contratam-se novos profissionais de saúde e equipamentos são adquiridos emergencialmente. Contudo, ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) dê mostras de sua efetividade, segue a experiência de outros países e não vem se mostrando capaz de absorver toda a nova demanda gerada.

À medida em que a curva da doença progride rumo ao seu pico, administradores públicos voltam seus olhos, então, para a iniciativa privada, e começam, aos poucos, a pôr em prática solução constitucional de caráter marcadamente excepcional: a requisição administrativa de bens e serviços particulares, para viabilizar o acesso universal à saúde.

Como se sabe, a regra é que o Poder Público não intervenha na propriedade privada e mesmo na ordem econômica, exceto se presente razão que derive diretamente dos interesses que a Administração tem o dever primário de preservar e atender. A opção da Constituição Federal de 1988 foi (de resto, acertada) liberal e social, exigindo o respeito ao direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII), mas condicionando-o à preservação de sua função social (art. 5º, XXIII), sempre dirigida à promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), valor máximo da ordem jurídica brasileira.

É de acordo com a ponderação de tais valores que a Constituição dispõe que, "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano" (art. 5º, XXV). O instituto indica a possibilidade de que se proceda à coativa utilização de bens particulares pelo Poder Público em situações emergenciais. O administrador pode, havendo fundada razão, requisitar bem pertencente a particular em contexto de "perigo público", desde que com o específico propósito de inibir os danos que dele decorram.

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A requisição pode ser civil, para evitar danos à vida, à saúde e aos bens da coletividade, ou militar, realizada por autoridades militares para a manutenção da segurança e soberania nacional, mesmo em tempos de paz.[1] O perigo público pode estar retratado nos mais diferentes cenários: incêndio, inundação, catástrofes naturais ou, como agora infelizmente nos é dado vivenciar, pandemia.[2]

O objetivo é o emprego temporário, episódico e excepcional da propriedade privada como forma de impedir prejuízo social significativo. Sopesam-se os princípios e valores envolvidos no caso concreto e se afastam, pontualmente, as faculdades inerentes à propriedade (livre uso, gozo e disposição do bem), em prol de interesses públicos relevantes.

Com efeito, ainda que somente tenha recebido os holofotes durante a pandemia, a requisição administrativa já possui, há tempos, regramento no plano infraconstitucional. Além de o Código Civil prescrevê-la como uma das hipóteses em que "o proprietário pode ser privado da coisa" (art. 1.228, §3º), a Lei nº 8.080/90, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), estabelece que, "para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização" (art. 15, XIII).

Assim, uma vez declarada a situação de "Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional" (ESPIN) pelo Ministério da Saúde (Portaria nº 188, de 03/02/2020) e reconhecido o quadro de pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11/03/2020, em muitos casos estarão presentes os pressupostos para a requisição administrativa dos bens e serviços mais variados, como respiradores, equipamentos médicos, serviços de saúde e leitos privados de internação hospitalar.

Muito embora a Constituição Federal garanta que "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada" (art. 199, caput), declarando que "as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde" (art. 199, §1º), é certo que essa atuação suplementar em relação à saúde pública deve ser feita de forma a atingir o objetivo máximo de promoção dos direitos fundamentais à vida, à integridade psicofísica e à dignidade da pessoa humana.

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Em um quadro tão excepcional, entes privados podem, sim, ser chamados a auxiliar na defesa da saúde de todos, em clima de solidariedade social, que, diga-se de passagem, também constitui um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, I, da CF).

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Por isso, agiu bem o legislador federal ao editar, de forma célere, a Lei nº 13.979/20 e regulamentar a requisição administrativa como uma das providências possíveis para o enfrentamento da emergência de saúde pública existente. No mesmo diploma, ainda previu outras medidas, que incluem o isolamento social, a quarentena, a determinação de realização compulsória de exames e tratamentos médicos, e a restrição de circulação por rodovias, portos ou aeroportos.

Nos termos da referida lei, a requisição poderá ser efetuada pelos gestores locais de saúde (art. 3º, §7º, III) e apenas estará sujeita ao "pagamento posterior de indenização justa" (art. 3º, VII). Nessa linha, diversos atos normativos estaduais[3] e municipais[4] já vêm sendo publicados por todo o País, regulamentando como a requisição será aplicada nos vários entes da Federação.

A despeito de ser indesejada e indevida a regulação superficial, o que se observa das normas locais é que têm sido estabelecidas, com frequência, sem que se transmita ao administrador parâmetros mínimos e adequados para a excepcional requisição.

Por certo, o permissivo para a requisição não pode induzir à captação desmotivada e generalizada de bens e equipamentos privados afetados aos serviços de saúde. Do contrário, o nobre propósito do administrador pode desvirtuar a autorização constitucional e se revelar danoso ao patrimônio público e, em última análise, aos mesmos direitos fundamentais que se busca proteger.

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No breve espaço deste artigo, importa trazer especial relevo a quatro aspectos atinentes à requisição: (i) o cabimento do instituto é subsidiário e excepcional, estando sujeito ao exame de sua proporcionalidade e à devida motivação por parte do administrador; (ii) há necessidade de compatibilização de todos os interesses relevantes envolvidos na prestação de serviços de saúde; (iii) a matéria deve estar sujeita à coordenação do Ministério da Saúde, com o apoio da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS; e, (iv) para cumprir a Constituição e garantir que o sistema de saúde suplementar sobreviva a este momento delicado, deve haver indenização justa, ainda que a posteriori.

II. A requisição como mecanismo subsidiário e excepcional 

Em primeiro lugar, deve-se ter um ponto claro: ao mesmo tempo em que a requisição é obviamente possível no quadro de pandemia, isso não significa que seja lícita em todos os casos e para todos os casos. É justamente em situações de calamidade e instabilidade social que a higidez do sistema constitucional é posta à prova. Por isso, conquanto a propriedade privada deva realmente ser funcionalizada para atender a interesses sociais relevantes, não pode haver a total e indiscriminada depreciação dos interesses privados. Como regra, a autonomia privada deve, sim, ser defendida e promovida. Para que haja intervenção tão severa na propriedade particular, é preciso que se esteja diante de cenário no qual não subsistam outras alternativas menos gravosas aos particulares que se afigurem igualmente suficientes para o atingimento do fim coletivo almejado.

Como todos os demais atos praticados pela Administração, a requisição não apenas está sujeita às condições gerais de validade (competência, forma, finalidade, motivo e objeto), como ao escrutínio de sua proporcionalidade e razoabilidade, devendo ser examinada sob os prismas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

No plano da adequação, a medida deve ser apropriada para aprimorar o atendimento da população, trazendo préstimos para a saúde coletiva. Se tiver o condão de trazer mais prejuízos do que benefícios, desorganizando e enfraquecendo o setor de saúde suplementar, justamente em época crítica para o segmento, precisará ser peremptoriamente afastada.

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Nesse aspecto, deve-se ter em mente o risco de que a requisição, com a ingerência pública em clínicas e hospitais particulares, venha a trazer, na verdade, ineficiência ao segmento, prejudicando ainda mais o atendimento prestado à população e acarretando danos para a saúde coletiva. Cada medida a ser adotada deve ser devidamente estudada e, como visto adiante, contar com as diretrizes técnicas dos entes federais competentes, como o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, conciliadas com as competências administrativas locais.

No plano da necessidade, por sua vez, é fundamental zelar pelo caráter subsidiário da requisição. Para limitar as faculdades ínsitas à propriedade, restringindo direitos de índole igualmente constitucional, deve haver situação de emergência que realmente justifique a intervenção estatal, tal como plasmado no texto constitucional.

Nesse giro, considerando que já é há muito sabido que o País enfrentaria uma crise de grandes proporções - ao menos desde fevereiro do corrente ano -, que poderá se prolongar por muitos meses, a prioridade deve ser pelo uso de todos os meios colocados à disposição da Administração Pública, segundo a sua indispensabilidade.

Sobre o tema, ganha notada importância a previsão, também constante da Lei nº 13.979/20, de que "é dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus" (art. 4º). Vale dizer: o legislador já conferiu meio célere e adequado para que o administrador público contrate os bens e serviços pertinentes para enfrentar a pandemia.

Houve, como deriva lógico, presunção do cabimento da dispensa de licitação, excluindo-se a exigência de "elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns" (art. 4º-C) e admitindo-se "a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado" (art. 4º-E).[5] Criou-se mais uma hipótese de licitação dispensável, em razão da situação fática vivenciada.

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Dessa forma, se existe ferramenta legal para que o administrador alcance o mesmo propósito por meio menos gravoso ao particular, é essa a medida que deverá ser adotada preferencialmente. Para que tenha espaço a requisição, que escapa à lógica ordinária da contratação, retirando seu caráter voluntário e permitindo o pagamento apenas em etapa posterior (sob as vestes de indenização, e não propriamente preço), revela-se imprescindível que não haja meios de proceder à contratação direta no caso concreto.[6]  O risco, afinal, será dúplice: primeiro, a intervenção imotivada na propriedade privada, influindo até mesmo na falta de isonomia no trato com os cidadãos (já que alguns são afetados por essa intervenção e outros não); segundo, e ainda mais grave, a potencial ofensa ao patrimônio público e à moralidade administrativa.

Em tese, há a possibilidade de que, em função da rápida e inesperada proliferação do vírus em determinada área, todas as formas possíveis de prestação dos serviços sejam necessárias e, por isso mesmo, até a requisição venha a ser indispensável. Entretanto, como a crise - repita-se - já é conhecida por todo o País há tempos, deve-se impedir, com firmeza, que o administrador construa deliberadamente a "urgência" que motivará a requisição. É essencial que se evite a adoção da mesma lógica que, infelizmente, constituiu prática disseminada: o administrador permanece inerte até o limite da emergência e, quando o perigo público está configurado, faz uso dos meios previstos para situações urgentes, fugindo ao rito próprio previsto em lei. A requisição, que é exceção, definitivamente não pode se tornar a regra.

Em geral, para que o instituto tenha cabimento, deverão estar presentes elementos que impeçam, verdadeiramente, a contratação direta. Tais elementos, com frequência, estarão associados à grande distorção dos preços praticados no mercado ou à ausência de oferta dos bens e serviços à Administração Pública.[7] O melhor exemplo de prática administrativa será sempre resultante da eleição da medida a partir dos critérios da eficiência, da economicidade e da moralidade, dentre outros. Nesse sentido, diversos entes da Federação já vêm promovendo parcerias para a locação, segundo a necessidade, de leitos e de equipamentos privados.[8]

Interessante, nesse aspecto, a previsão do Decreto Municipal nº 47.311, de 27/03/2020, editado pelo Prefeito do Rio de Janeiro, que dispõe, em seu art. 3º, que: "A requisição administrativa somente poderá ser efetuada nos casos de: I - prática de preços abusivos; II - negativa injustificada de fornecimento para o Município". O diploma bem deu o tom da questão: para que seja viável a requisição, deverá o administrador estar impedido de contratar diretamente os mesmos bens e serviços com o particular; caso contrário, a requisição ser-lhe-á vedada.

A única nota negativa é de que, no afã de já estipular critérios concretos, o decreto em questão estabeleceu que "será considerado preço abusivo aquele que apresentar variação superior a 10% (dez por cento) tendo como referência o preço máximo praticado ou os preços máximos praticados em aquisições do mesmo produto/serviço realizadas pelo município nos últimos 12 meses". O índice de 10%, contudo, tende a ser facilmente alcançado e a norma alimentará conflitos, uma vez que - como é notório - o acesso a bens e serviços de saúde tem se tornado mais oneroso em todo o mundo. Em muitos casos, será mesmo inevitável que o custo dos serviços de saúde oferecidos por entes particulares supere esse patamar, sem que se possa falar em qualquer abusividade. O percentual de 10% parece, em rigor, não encontrar qualquer amparo técnico.

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Somado a tudo isso, deve ser ponderado que a contratação ordinária pressupõe ajuste prévio de preços e sobre esse incidirão os mecanismos de controle interno e externo, diferentemente do que se passa com a requisição, cujo custo final somente será conhecido e apurado posteriormente. Há o risco, portanto, de que a Administração assuma despesas imprevisíveis e elevadas, onerando ainda mais os cofres públicos, o que não ocorreria no âmbito de parcerias bem ajustadas.

Por fim, superando-se os critérios da adequação e necessidade, tem-se que, no plano da proporcionalidade em sentido estrito, a requisição administrativa deve ser promovida a partir da devida ponderação de todos os direitos e interesses potencialmente envolvidos.

Pode-se cogitar, a título de exemplo, da hipótese em que a Administração promova a requisição de leitos hospitalares que se prestem a modalidades específicas de terapia (como leitos neonatais, pediátricos ou oncológicos), colocando em risco até mesmo atendimentos de natureza contínua. Em outras palavras, a depender da requisição formulada, poder-se-á trazer mais danos do que proteções aos direitos à vida e à saúde. Então, dentre outros fatores concretos a serem sopesados, caberá o exame da peculiaridade de cada unidade hospitalar, para que se identifique a capacidade concreta de atendimento e a melhor destinação a lhe ser empregada.

O tema, como visto, não é simples e frequentemente dependerá da tomada de decisões com alto grau de complexidade. Por isso, revela-se ainda mais importante que o administrador público motive adequadamente a conveniência e oportunidade do ato de requisição, em procedimento administrativo próprio. A discricionariedade que lhe é atribuída não poderá, por certo, converter-se em arbitrariedade, ao arrepio da Constituição Federal e da legislação aplicável.

III. A situação dos beneficiários de planos de saúde

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A atividade securitária é de importância ímpar para cada país e sua população. Embora o seguro "não possa substituir as estruturas sociais, ele pode aliviar o ônus; não pode e não deve assumir o papel do Estado de fazer frente aos desafios da sociedade, mas pode ajudar a encontrar soluções adequadas"[9]. Neste momento de pandemia, fica ainda mais evidenciada a relevância social da atividade desempenhada por seguradoras e operadoras de planos de saúde.

Nesse sentido, deve-se ter em conta que os sistemas de seguro estão fundados no princípio do mutualismo, que é também expressão da própria função social das relações securitárias.[10] O preço pago por cada um dos beneficiários é utilizado para compor a conta dos gastos de todo o grupo. Há, então, pessoas que contribuem por longo período para a manutenção global do sistema, mas, por vezes, permanecem por anos sem usufruir os serviços respectivos.

Portanto, uma questão complexa está envolvida no debate sobre a requisição administrativa de bens e serviços médicos: é possível que, ao se requisitar leitos de internação e equipamentos utilizados por hospitais privados, tenha-se como resultado a imposição de dificuldade, ou mesmo impedimento, a que beneficiários de planos de saúde façam uso dos serviços de profissionais e instalações particulares a que teriam normalmente direito. Dito de outra forma, mesmo após adimplirem as suas obrigações e contribuírem para o sistema da saúde suplementar, poderão esses consumidores ver-se privados da cobertura médica prevista em seus respectivos planos.

O tema é delicado, sobretudo, porque a pandemia traz aspectos de saúde coletiva e rompe a lógica ordinária das relações contratuais.

De um lado, "uma vida não vale mais que a outra", como bem destacado no bojo da ADPF nº 671, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, ainda em curso perante o STF. Essa premissa é certa e insuperável. Exatamente por isso, todos os atores do sistema de saúde - público e privado - devem estar engajados na proteção da saúde da coletividade, buscando expandir o atendimento prestado o máximo possível.

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De outro lado, contudo, não parece razoável subtrair direitos de parte da população justamente no momento em que deles mais precisa. Depois de arcar regularmente com suas prestações para manter o plano de saúde - às vezes por anos a fio -, na legítima expectativa de ter acesso a serviços de saúde privados, contrariaria os fundamentos mais básicos de direito do consumidor se negar essa qualidade de atendimento no momento em que viesse a ser efetivamente necessária.

A melhor solução para o impasse, assim, parece ser a adoção de cautela, com prudência na tomada de decisões e na eleição das diretrizes a serem aplicadas. Para que se subverta a lógica própria da saúde suplementar, e se promovam requisições administrativas, unificando episodicamente os sistemas, não apenas deve ser inviável a contratação direta dos serviços particulares (conforme exposto no tópico anterior), como se deve analisar a eventual capacidade ociosa das instalações de saúde privadas em questão, definindo-se precedentemente - pelo requisitante e pelo requisitado - a real necessidade e a forma de execução da medida.

Em qualquer caso, a redistribuição de vagas para o setor público deverá ser amparada em fundamentos sólidos e ser tratada como medida francamente excepcional. Não há justificativa, a priori, para que entes públicos intervenham coativamente em unidades hospitalares que já observem adequadamente a sua função social e não registrem ociosidade, conferindo o devido atendimento à coletividade de pacientes.

IV. Coordenação em âmbito nacional

Podem ser alinhados múltiplos fundamentos para que a requisição administrativa seja promovida indistintamente por todas as pessoas políticas, como prevê o art. 3º, § 7º, III, da Lei nº 13.979/20. Isso se deve, entre outros fatores, à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para "cuidar da saúde e assistência pública" (art. 23, II, da CF), bem como à existência de peculiaridades regionais em um país com extensão continental como o Brasil.

Sem prejuízo dessa consideração, a absoluta dispersão do tratamento da matéria é igualmente inconveniente, diante: (i) da frequente ineficiência da máquina pública, que em muitas ocasiões nem sequer é orientada por critérios estritamente técnicos; (ii) dos riscos de abalo grave ao setor da saúde suplementar, impactando-se direitos de grande massa de consumidores; e (iii) da possibilidade de conflitos entre entes federativos, por vezes alimentados por discursos de viés estritamente político - como, aliás, já vem sendo noticiado na imprensa.[11]

Não há espaço para o amadorismo e já se vê que muito do que se produziu na oratória não trouxe ganhos para a garantia do fundamental direito à saúde. Se outros países (como Reino Unido, Espanha e Austrália[12]) lançaram mão da requisição como forma de completar a prestação dos serviços essenciais, aqui, desde a edição da Lei Federal nº 13.979/20, diversos Estados e Municípios editaram atos normativos regulando a questão de forma precária e marcadamente insuficiente.

Assim, diante de aspecto tão sensível para a promoção da saúde pública e a organização do setor de assistência suplementar, afigura-se fundamental que o Ministério da Saúde, com o suporte da ANS (que detém o conhecimento de toda a dinâmica do setor de saúde privado, com acesso a dados e informações que podem se revelar primordiais), promova a análise global e técnica da questão. Há de ser afirmado apenas um centro de competência para concentrar as atribuições de: (i) coordenação da convivência federativa no que concerne a tais medidas de enfrentamento da pandemia; (ii) definição de critérios a serem observados em âmbito nacional pelos gestores locais de saúde; e (iii) solução administrativa dos conflitos que porventura venham a eclodir quanto às requisições.

Por um lado, é o Ministério da Saúde o órgão máximo de direção do Sistema Único de Saúde na esfera federal, conforme art. 9º, I, da Lei nº 8.080/90. Por outro, compete à ANS, além de regular e normatizar a saúde suplementar, "fiscalizar as atividades das operadoras de planos privados de assistência à saúde e zelar pelo cumprimento das normas atinentes ao seu funcionamento" (art. 4º, XXIII, da Lei nº 9.961/00), bem como "proceder à integração de informações com os bancos de dados do Sistema Único de Saúde" (art. 4º, XIX, da Lei nº 9.961/00).

A toda evidência, por mais que a competência em tema de saúde seja comum entre os entes da Federação (art. 23, I, da CF), a edição desordenada de atos de requisição pode vir a comprometer ambos os setores de saúde, o público e o privado, prejudicando toda a sociedade.

Sob esse viés, aliás, já está em trâmite, no Supremo Tribunal Federal, a ADI nº 671, movida pela Confederação Nacional de Saúde - CNSAÚDE, em que se visa obter a interpretação conforme a Constituição da Lei nº 13.979/20, declarando-se que "todas as requisições administrativas projetadas para serem exercidas por gestores de saúde estaduais ou municipais sejam submetidas ao prévio exame e autorização do Ministério da Saúde para serem, só depois disso, implementadas".

Na petição inicial, argui-se justamente que "o problema relativo à saúde pública, especialmente no atual cenário de pandemia, é sistêmico e decorre de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos, que se digladiam em detrimento das prementes políticas públicas. A gravidade do quadro, a incapacidade das instâncias ordinárias de decisão governamental, inclusive influenciada por disputas meramente partidárias, e das instâncias ordinárias do Judiciário brasileiro, evidenciam, cabalmente, a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Federal".

Ainda não houve decisão sobre a matéria, mas o certo é que a descentralização não pode ensejar a ausência de integração nacional, notadamente em hipótese que demanda atuação concertada em todo o País.

Um Estado organizado a partir da descentralização política - que conta com 26 estados, o Distrito Federal e mais de 5.500 municípios - reclama e exige que a dispersão do tratamento da questão não seja a energia a gerar insegurança e imprevisibilidade jurídica, inviabilizando que os principais atores do Sistema Único possam organizar suas ações e projetar adequadamente os esforços a serem adotados para enfrentar o cenário de pandemia por todo o País.

A difusão indiscriminada da requisição é mais um efeito colateral da sucessão de conflitos federativos que os tempos atuais revelam, com sérios impactos sociais.

O ideal de fundo deve ser sempre o equacionamento dos danos que emergem da pandemia e a obrigação, comum a todos, de apenas adotar medidas capazes de conter a expansão dos danos, jamais conspirar - por excesso ou abuso de poder - para a ruptura de uma sinergia que é obrigatória e, em épocas de crise, mostra-se ainda mais indispensável. A ausência de unicidade das políticas públicas, afinal, custa caro à saúde do povo brasileiro.

V. Indenização posterior

Admitida a requisição, passa a ser indissociável o direito à indenização: posterior à utilização pública do bem privado, porém, justa, como preveem os arts. 5º, XXV, da CF, e 3º, VII, da Lei nº 13.979/20. É essa a forma que o ordenamento indica para compensar a extraordinária utilização de bens particulares durante o período em que persistiu o quadro de "perigo público".

Eis aqui mais um fator de distinção. As contratações públicas devem pressupor o preço ajustado na fase precedente à celebração do ajuste, em homenagem à previsibilidade e à economicidade das despesas públicas. Aqui, no entanto, o pagamento posterior não pode significar apenas expansão do custo ou uma forma de ofensa à defesa do patrimônio público e privado.

Naturalmente, a apuração do valor indenizável dependerá da natureza do bem (se imóvel ou móvel; se consumível ou não) ou, se for o caso, do serviço requisitado. O importante é que a mera presença dos pressupostos para a requisição não signifique o confisco de bens privados, nem o pagamento futuro de um preço qualquer, incompatível com seu valor de mercado. Permite-se o pagamento posterior justamente para viabilizar que, ultrapassado a fase crítica, a Administração tenha fôlego para recompor o patrimônio dos particulares que contribuíram para o afastamento da crise.

Especificamente no que toca aos bens e serviços ligados diretamente à saúde privada, é efetivamente crucial que a remuneração seja adequada, até mesmo para evitar que o segmento saia ainda mais afetado da grave crise vivida, tendo a possibilidade de seguir colaborando com o Poder Público para a garantia de acesso universal à saúde (art. 196 da CF).

Deve ser alvo de críticas, então, a postura adotada por diversos entes políticos de já preverem, de antemão, que a reparação dar-se-á exclusivamente na forma da Tabela do SUS. Essa tabela, vale lembrar, aponta os valores dos diversos procedimentos médicos aplicáveis, com a finalidade precípua de permitir a elaboração de previsão orçamentária para o custeio de serviços públicos de saúde; não representa, todavia, o seu real valor de mercado, nem leva em conta os investimentos realizados por entidades privadas para garantir excelência nos serviços. A simplicidade e inadequação do critério pode, com efeito, revelar-se outra fonte de risco ao sistema de saúde suplementar.

Até aqui, a solução que melhor se ajustou ao sistema constitucional parece ter sido aquela encampada pela Lei Municipal nº 2.603, de 17/04/2020, editada pelo Município de Manaus. Em seu art. 13, caput, previu-se expressamente que, em caso de requisição, "será garantido o pagamento posterior de indenização justa pelo valor de mercado". O preço praticado na livre iniciativa somente poderá ser posto de lado "no caso de eventuais distorções de mercado que repercutam na avaliação do preço a ser indenizado e que importem em ganho excessivo pelo interessado". Mesmo nessa conjectura, de toda forma, "será levada em consideração a média de preços do bem ou serviços praticados no mercado nos últimos doze meses anteriores à requisição" (art. 13, parágrafo único).

O essencial é que, passada toda a fase crítica, não se esqueçam dos esforços de todos aqueles que colaboraram - e seguirão colaborando - para permitir o acesso da população brasileira à saúde.

VI. Conclusão 

A grave situação de pandemia vivenciada por nossa geração deve ser enfrentada não apenas por medidas sanitárias, mas igualmente com o uso de todos os mecanismos em direito admitidos, incluindo a requisição administrativa, que encontra respaldo constitucional e legal e foi prevista justamente para cenários extraordinários como o presente.

Para tanto, contudo, não se deve afastar o caráter marcadamente excepcional do instituto, nem a necessidade de justa indenização em favor do particular atingido pela medida. A gravidade do instante não pode alimentar decisões que, longe de significar respeito ao direito à vida e à integridade física, acabem por representar a fragilização desses e de outros direitos tidos por fundamentais em nosso sistema.

Todos os atores do sistema de saúde brasileiro devem estar verdadeiramente dispostos à conjugação de esforços para o enfrentamento da crise e se espera que, superada a pandemia, um novo conjunto de marcos regulatórios venha a ensejar maior segurança jurídica, garantias de estabilidade contratual e, sobretudo, a expansão da proteção à saúde da coletividade.

*Márcio Fernando Elias Rosa, advogado e sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Membro do Ministério Público de São Paulo aposentado

*Yuri Maciel Araujo, advogado e sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Mestre em Direito Processual pela UERJ

[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 23 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 511-512.

[2] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 21 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 339.

[3] Acre - Decreto n° 5.465/20; Alagoas - Decreto n° 69.501/20; Amazonas - Decreto nº 42.061/20; Bahia - Decreto n° 19.533/20; Ceará - Decreto n° 33.510/20; Distrito Federal - Decreto nº 40.512/20; Espírito Santo - Decreto n° 4593-R/20; Goiás - Decreto n° 9.653/20; Maranhão - Decreto n° 35.762/20; Mato Grosso - Decreto nº 407/20; Mato Grosso do Sul - Decreto nº 15.396/20; Minas Gerais - Decreto n° 113/20; Pará - Decreto n° 619/20; Paraíba - Decreto nº 40.155/20; Paraná - Decreto n° 4.315/20; Pernambuco - Decreto nº 48.809/20; Piauí - Decreto n° 18.884/20; Rio de Janeiro - Decreto n° 46.966/20; Rio Grande do Norte - Decreto n° 29.513/20; Rio Grande do Sul - Decreto nº 55.128/20; Rondônia - Decreto n° 24.887/20; Roraima - Decreto n° 28.587-E/20; Santa Catarina - Decreto n° 525/20; Sergipe - Decreto n° 40.567/20; e Tocantins - Decreto n° 6.072/20.

[4] Curitiba - Decreto Municipal n° 407/20; Manaus - Lei n° 2.603/20; Niterói - Decreto Municipal n° 13.520/20; Rio Branco - Decreto Municipal n° 228/20; Rio de Janeiro - Decreto nº 47.312 de 2020; Salvador - Decreto nº 32.275/20; São Luís - Decreto nº 54.936/20; e São Paulo - Decreto Municipal n° 59.283/20.

[5] Em rigor, sequer haveria a necessidade da referida explicitação, ante a evidente emergência que decorre da situação de calamidade pública declarada em todos os níveis da Federação. De toda maneira, a previsão legal é louvável, por proporcionar maior segurança jurídica ao administrador, reforçando a possibilidade da dispensa de licitação e permitindo a tomada de decisões rápidas e eficientes.

[6] Como já se pontuou, "é abusivo, portanto, além de inadequado e arbitrário, o ato do gestor público que se aproveita do estado de calamidade pública existente para requisitar bens e serviços - especialmente os relacionados à área de saúde -, postergando a contraprestação devida ao requisitado para data futura e incerta, quando poderia muito bem realizar a contratação direta da mesma pessoa natural e jurídica. Tal conduta, nessas circunstâncias, deve ser combatida pelas vias adequadas, sendo papel do Poder Público coibir os excessos a que temos assistido" (GIAMUNDO NETO, Giuseppe. "A requisição administrativa em tempos de calamidade pública". Disponível em . Acesso em 15/05/2020).

[7] Em sentido análogo, ver ISSA, Rafael Hamze. "Requisição administrativa para Enfrentamento da Covid-19". Disponível em . Acesso em 15/05/2020.

[8] O Município de São Paulo, por exemplo, firmou parceria com 11 (onze) hospitais privados, conforme matéria disponível em . Acesso em 15/05/2020.

[9] HOPPE, Kathrin. "A importância do seguro para a sociedade". The Geneva Association - Risk & Insurance Economics, p. 7. Disponível em . Acesso em 15/05/2020.

[10] "A função social do seguro revela-se de forma cristalina: garantir, com o auxílio de muitos, que a desorganização que atingiu a uns poucos possa ser superada. Satisfaz-se o interesse de todo 'o sistema' em questão, uma vez que as relações podem continuar a se desenvolver, de tal forma que praticamente não sejam sentidas as consequências do ocorrido" (STIGLITZ, Rubén; TZIRULNIK, Ernesto. Derecho de Seguros, 3. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2001, p. 27).

[11] "Desarmonia federativa: Epidemia da Covid-19 obriga Justiça a mediar batalha por respiradores". Disponível em . Acesso em 15/05/2020. No mesmo sentido: "Após decisão judicial, prefeitura de Cotia (SP) confisca respiradores pulmonares de empresa". Disponível em: . Acesso em 15/05/2020.

[12] "Contra o esgotamento, países usam leitos privados na rede pública para tratar Covid-19". Disponível em . Acesso em 15/05/2020.

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