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Relato de audiência virtual - uma analogia aos famosos 'relatos de parto'

Por Marina Freire
Atualização:
Marina Freire. Foto: Divulgação

O sistema judiciário recebeu um choque de gestão de 20 anos em alguns meses. Estávamos acostumados a mudanças lentas, após muito estudo, muita conversa, muitos nãos, depois alguns talvez, para algum dia receber um sim a todo e qualquer singelo pleito de alteração no cotidiano da Justiça. E, realmente, o que funciona numa pequena comarca pode não servir a uma grande centro e vice-versa. Não obstante, lembremos que as 27 Unidades da Federação têm certa autonomia administrativa de como gerir seus recursos, sistemas etc. Não é à toa a ausência de um portal digital único e resistência ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quando tenta uniformizar procedimentos.

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Pois bem. Em 17 de março de 2020, o CNJ emitiu a Recomendação nº 62 e, em seguida, no dia 25, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o Provimento CSM 2549/20, em consonância com a Lei de Emergência, determinando que todos servidores e magistrados permanecessem em suas residências. Durante alguns dias, ninguém sabia ao certo o que fazer e para onde correr. Prazos foram suspensos e tudo ficou de pernas para o ar. O sentido de urgência recebeu nova conotação. A enxurrada de pedidos de internação hospitalar, de liberdade para réus presos em flagrante, tutelas para retirada de nome do Serasa, momentaneamente, desapareceram.

Houve um breve "standby" no tempo e no espaço, mas apenas no mundo paralelo. Obviamente, todos se deram conta de que era necessária uma guinada de 180 graus na estrutura e no pensamento. Não houve tempo para titubear, era o momento de mostrar pró-atividade, pulso firme e determinação.

E assim vem sendo, os Tribunais espalhados pelo nosso País, concatenados com o CNJ, vêm criando soluções inteligentes, céleres, econômicas e sagazes, que permanecerão, creio, mesmo após o fim da pandemia.

Dentre as inúmeras mudanças está a audiência realizada por videoconferência, que não era uma novidade, porém recebia ressalvas das mais variadas formas. Lembro-me que no meu ingresso na carreira, em 2007, tive contato com o desembargador Edson Brandão, à época juiz, e um dos maiores entusiastas da realização das audiências de réu preso por vídeo. Ele afirmava que a relutância na consecução do ato daquela forma se dava em razão da síndrome de Maria Betânia, ou seja: "olhos nos olhos, quero ver o que você diz".

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E, em verdade, era algo muito inovador, para uma geração de juízes que passou da máquina de escrever para computadores, da redução a termo de um depoimento para a encantadora esteneotipia e, posteriormente, para gravação de todos os atos em mídia, com consequente dúvida quanto à imperiosidade da degravação, e agora se depara com a possibilidade de praticar atos em qualquer lugar, a qualquer momento, de seu celular ou computador, que reproduzem exatamente o ocorrido, sem mais nem menos.

Um viva à audiência virtual: A panaceia da pandemia judiciária!

Entretanto, surgiram novas celeumas a serem dirimidas. Como fazer, quando fazer, por que fazer, quais os limites e a ética de um ato que é tão caro e precioso ao jurisdicionado.

Peguei-me pensando nessas circunstâncias após ler várias notícias a respeito de como as audiências virtuais vêm sendo realizadas e da forma como eu mesma as pratiquei, correndo o risco de ter cometido algumas exacerbações que ainda não tenho certeza de suas possibilidades.

Alguns exemplos que trago à baila: sustentação oral realizada pelo advogado deitado em sua rede; réu deitado em sua cama para ser interrogado; vítima de violência doméstica que se dirige à casa do agressor para prestar suas declarações sobre o ocorrido, pois estava sem internet em sua casa; de outra banda, colega juíza relata que realizou audiência no corredor no hospital, enquanto aguardava o atendimento de sua filha adoentada; outro magistrado conta que parou o carro e procedeu ao ato, ali, estacionado na sarjeta.

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Da minha experiência pessoal, nas audiências de processo crime, uma testemunha havia faltado, era um policial militar que estaria de licença, e caso não fosse ouvido, haveria redesignação e a instrução não se findaria, sendo assim, solicitei ao outro policial que telefonasse àquela testemunha faltante, pois, embora de licença, não havia, a meu ver, justo motivo para sua ausência, haja vista que ele poderia ingressar na sala virtual de seu celular, e assim o foi e finalizamos o processo; no outro caso, o advogado havia arrolado uma testemunha de defesa que estava tendo dificuldades técnicas para adentrar à reunião digital, contudo, ele falava com ela ao telefone, quando então pedi para que ele fizesse uma chamada de vídeo a ela e eu a inquiriria pelo vídeo dele, ou seja, foi uma para-audienciavirtual; por fim, sessão do colégio recursal marcada para as 14 horas, contudo, a escrevente responsável achou por bem reunir todos os magistrados 20 minutos antes, todavia não avisou e já executou a chamada, que apareceu no meu celular, de vídeo, pois ele é conectado ao meu computador, só que eu ainda não estava pronta. Quem não se sente compelido a responder a um chamado da Justiça? Fiquei no dilema, abri a chamada, fechei o vídeo, acabei de me arrumar e desci para meu escritório, onde costumo fazer as audiências pelo meu computador.

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Ora, até o momento, são inúmeros os causos a se contar, dos mais divertidos aos mais inusitados, contudo, temos que nos perguntar: quais os limites do ingresso na esfera pessoal do cidadão, seja ele parte, testemunha, advogado ou magistrado. Fala-se em privacidade de dados, porém, neste caso, como podemos delimita-la? Qual a ética da realização de uma audiência virtual? Deve ser realizado um código de conduta ou será ela balizada empiricamente com o passar dos dias?

Manteremos a mesma forma de realizar o ato com uma vestimenta atualizada tão somente? Teremos a execução de um ato formalmente novo ou também materialmente novo?

De qualquer maneira, o momento foi promissor na desmistificação desse instrumento que vem muito auxiliando na consecução da justiça, entretanto, acredito que, malgrado a atenuação das fronteiras, as relações jurisdicionais são calcadas no humano, físico, na empatia e no contato, de modo que as audiências virtuais não poderão ser utilizadas de forma indiscriminada para qualquer processo.

Destarte, mister uma análise aprofundada dos resultados e da satisfação subjetiva daqueles envolvidos, pois ainda lidamos com gente de carne e osso.

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*Marina Freire é juíza de direito auxiliar da Comarca de Bauru

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