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Regulação da publicidade infantil: pontos de partida para um debate com toda a sociedade civil

Por Luciano Benetti Timm
Atualização:
Luciano Benetti Timm. Foto: Divulgação

Na obra sua sobre moralidade, recentemente traduzida para o português, o professor de Harvard J. Green defende que o debate sobre políticas públicas deveria ser conduzido pelo que os neurocientistas chamam de "sistema cerebral 2", ou seja, aquele predominantemente capaz de fazer raciocínios complexos e pragmáticos (em outras palavras, "o Dr. Spock que existe em todos nós humanos", como diria o também Professor de Harvard Cass Sustein em sua obra Nudges) e não (apenas) pelo "sistema cerebral 1", ou seja, o intuitivo ("o Homer Simpson que existe em todos nós", igualmente parafraseando o mesmo Sustein). Tratar-se-ia, portanto, de fazer um debate "iluminista", racional, baseado em dados e evidências científicas, como defende um terceiro professor de Harvard, S. Pinker (na obra "Iluminismo Agora").

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Pois bem, a última semana foi caracterizada por um debate acalorado por diversos campos da sociedade civil acerca da proposta de consulta pública sobre publicidade infantil lançada pela SENACON (Ministério da Justiça e Segurança Pública).

Vamos aos fatos em sequência histórica para auxiliar a um debate produtivo da sociedade.

Em 2014, o CONANDA publica uma polêmica resolução - até mesmo para um governo autointitulado de esquerda - sobre o tema da publicidade infantil, estabelecendo parâmetros não previstos em lei federal sobre o assunto.Sabidamente, apenas o Código de Defesa do Consumidor restringiu o tema da publicidade infantil e o CONANDA não tem competência regulatória para disciplinar o CDC, nem sequer é órgão de estado ou mesmo de governo.

Tal deliberação chegou a ser usada em algumas ações movidas pelo Ministério Público, em atuações de alguns procons, bem como em decisões judiciais isoladas.

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No entanto, ela está longe de ser um parâmetro seguro ou adequado para trazer segurança jurídica ao ambiente publicitário, especialmente porque, no início do ano passado, o governo federal propôs medida provisória de liberdade econômica convertida em lei (LLE), que dispôs, em seu artigo 4º, inc. VIII ¹ qualquer restrição à publicidade que não aquela prevista na Constituição Federal ou na legislação federal. Na ocasião, a SENACON emitiu Nota Técnica Nota Técnica n.º 2/2019/GAB-SENACON/SENACON/MJ favorável ao texto da MP convertida em Lei, considerando que o CDC não foi por ela expressamente revogado.

Logo, sua regulação da publicidade (inclusive infantil) permanecia intacta 2². Não há, portanto, como sustentar juridicamente que uma resolução do CONANDA possa sobreviver a essa mudança legal, até porque sua existência e configuração original só é mantida por precária decisão liminar concedida pelo STF.

Resta evidente, nessa esteira, que mais inseguro se tornou o ambiente regulatório, uma vez que a vagueza semântica da norma legal do CDC em questão é suficientemente aberta para permitir excessiva judicialização ou mesmo uma atuação não uniforme dos diversos órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. E segurança jurídica é um valor fundamental a qualquer sistema jurídico.

Faz sentido, então, que a SENACON tome a dianteira, como órgão responsável pela coordenação da política pública nacional da defesa do consumidor, ao pretender orientar o comportamento dos agentes econômicos no mercado publicitário com a exemplificação do que seria considerado publicidade infantil abusiva e/ou enganosa, por meio de expedição de portaria, conforme ensejam os arts. 37, § 2º, do CDC e 14, § 1º, do Dec 2.181/1997. Tanto é assim, que a SENACON expediu diversas portarias para resolver problemas do mercado de consumo, a exemplo da Portaria 618/2019 MJSP, que regulamenta a apresentação de campanhas de recall.

Seguindo o escorço histórico factual, também ao longo de 2019 foram diversas as conversas sobre a necessidade de segurança jurídica com diversas entidades da sociedade civil, das mais diversas matizes, sobre a publicidade infantil no ambiente virtual e mesmo sobre a ausência de simetria entre a regulação da mídia tradicional versus a midia digital.

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Não foram poucas, também, as discussões no âmbito do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) sobre a necessidade de aplicação do CDC no ambiente virtual, aí incluídas as "big techs" e, também, os marketplaces, seguindo orientação da OCDE (OECD Toolkit for Protecting Digital Consumers, de 2019, e Consumer Protection in E-commerce, de 2016), o que inclusive gerou uma Nota Técnica da SENACON sobre o tema (Nota Técnica n.º 610/2019/CCSS/CGCTSA/DPDC/SENACON/MJ), onde ficou evidenciada a opinião da SENACON de que a publicidade não se confunde com liberdade de opinião, pois a primeira está associada à livre iniciativa (liberdade econômica) e a segunda seria uma liberdade mais ampla, associada a liberdade de pensamento (liberdade filosófica ou política). Não se deve esquecer que o Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, tem uma extensa constituição, com um capítulo específico sobre a ordem econômica.

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Por todos esses motivos, entendeu a SENACON pela necessidade de iniciar uma regulação da publicidade infantil com ênfase no ambiente digital, partindo de algumas premissas:

  1. Publicidade deriva de um direito fundamental de liberdade econômica (livre iniciativa), mas não necessariamente da liberdade de expressão;
  2. O CDC é parte integrante da regulação da livre iniciativa, de acordo com art. 170 da Constituição Federal.
  3. Senacon tem competência regulatória com base no CDC para emitir portarias;
  4. Portarias podem trazer segurança jurídica e previsibilidade quando adequadamente concebidas;
  5. Conforme a LLE, não se deve promover irrazoável regulação no mercado com base no CDC, de modo que o ponto de partida deveria ser a autorregulação setorial (que culminaria com uma corregulação, tal como preconizado pela OCDE);
  6. Deveria haver simetria regulatória entre os ambientes publicitários (físicos e digitais);

Previamente à consulta pública, a Senacon enviou ofícios a diversas entidades para colher subsídios iniciais e chegou à conclusão de que o ponto de partida seriam as normas de autorregulação do CONAR, como um parâmetro mínimo que deveria nortear a corregulação do Estado. Tal iniciativa é semelhante a outras medidas da SENACON, a exemplo do que ocorreu nos temas dos empréstimos consignados e do telemarketing.

Voltamos ao ponto inicial. Melhor um debate pragmático e racional baseado em consensos mínimos e pautados em evidências científicas, a um estridente choque puramente de convicções principiológicas  ou dogmáticas sobre políticas públicas, não? Por que não uma corregulação da Senacon, a partir da autorregulação do CONAR com eventuais ajustes ao longo da consulta pública? Esse é o convite da SENACON para toda sociedade civil e empresarial.

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*Luciano Benetti Timm, secretário nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Doutor em Direito. Professor universitário

¹ - "Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: (...) VIII - restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e"

² - Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (...) III - definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda; (...) § 3º O disposto no inciso III do caput deste artigo não se aplica: (...) II - à legislação de defesa da concorrência, aos direitos do consumidor e às demais disposições protegidas por lei federal.

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