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Reformar a lei é possível, mas não tem a força de reduzir a tutela da probidade em nosso sistema constitucional democrático

Por José Roberto Pimenta Oliveira
Atualização:
José Roberto Pimenta Oliveira. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Apesar de o Brasil ainda ocupar posições deprimentes em quaisquer índices de percepção de práticas de corrupção divulgados, eis que foi promulgada a Lei nº 14.230 em 26.10.2021, reformando a Lei nº 8.429/1992, a lei mais importante para o controle da atuação ético-jurídica de agentes públicos no direito brasileiro, nossa verdadeira Lei Nacional Anticorrupção. Em sistemas estruturalmente democráticos, seria de esperar um aperfeiçoamento institucional amplo nesta temática, que se reputa fundamental ao desenvolvimento político, econômico, social e cultural brasileiro. Todavia, como vem demonstrando a história recente, optou-se pela trajetória em sentido inverso.

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De vários aspectos que comprovam a fragilização do Sistema Brasileiro Anticorrupção, merece destaque a tentativa legislativa de reduzir o que a Constituição entabula como improbidade administrativa, em especial, quando não há o resultado vergonhoso do enriquecimento ilícito de agentes públicos (propinas e patrimônios vultosos e incompatíveis) e terceiros (pessoas físicas e jurídicas, envolvidas na prática corruptiva), e quando não há o resultado intolerável de prejuízo ao Erário - o patrimônio econômico que pertence à coletividade.

Consignando o núcleo do comportamento ímprobo, o artigo 11 foi expressamente alterado. Ofensa aos deveres da honestidade, da legalidade, da imparcialidade e da lealdade às instituições públicas era a descrição geral em que todas as gravíssimas patologias político-administrativas se encaixavam, como as recorrentes e múltiplas formas de patrimonialismos, nepotismos, favoritismos, partidarismos, coronelismos, filhotismos, empreguismos, clientelismos etc. Tenta-se recortar a amplitude da norma, para reduzi-la a hipóteses supostamente taxativas do  reformulado rol do artigo 11, na redação da Lei nº 14.230.

Ocorre que não é o legislador que define a improbidade e o seu conteúdo, pois ele só pode configurar a sua "forma e gradação", como lhe obriga a Constituição, no tipo constitucional do artigo 37, §4º. O que torna um ilícito como improbidade decorre de um juízo principiológico constitucional, e não meramente legislativo.

No Estado Material de Direito, princípios constitucionais são normas vinculantes, protegem bens jurídicos essenciais à organização do Estado, e não podem ser vilipendiados ou desprotegidos, de forma desengonçada, por normas que estão em escalão inferior à Lei Fundamental. Para um Estado contaminado pelo autoritarismo e opacidade, e dominado por interesses privados não republicanos, a probidade é dos bens jurídicos mais cuidadosamente defendidos na refundação de nossa República.

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Não adianta violentar o texto da LIA, retirando de seus enunciados ofensas à deslealdade, ocorrência de desvio de finalidade, agressão aos deveres de promoção da acessibilidade (em prol de pessoas com deficiência), descumprimento de regras na transferência de recursos na área da saúde pública (em prol da população que dependem do sistema público de saúde) - como se fez alterando o artigo 11, caput, e revogando os incisos I, II, IX e X. Também não adianta expulsar a lealdade dos valores que expressam o núcleo de toda e qualquer conduta ímproba - como se fez alterando o caput do artigo 11.

Para todas as hipóteses em que agentes foram responsabilizados ou estão sendo processados por estas condutas ímprobas, o sistema manteve o que se denomina continuidade normativa típica. A ilicitude destas condutas continua se contrária ao tipo constitucional (artigo 37, §4º), e, bem por esta razão, segue prevista ou acolhida na própria Lei, mesmo após ter sido alterada, apenas que o seu caráter ilícito foi deslocado de um dispositivo para outro.

Este é um fenômeno já muito conhecido no Direito Penal e pouco enfrentado no Direito Administrativo Sancionador, mas, dentro deste e no terreno da improbidade era desconhecido no direito brasileiro, já que revogação de tipos da LIA só ocorreu uma única vez em lei especial (artigo 21, do Estatuto da Metrópole), o que explica a forma apressada da doutrina em recorrer a ideia simplista da abolitio criminis em favor de acusados e réus, que podem ser beneficiados pelas mudanças na Lei Geral.

Fácil demonstrar que estes comportamentos permanecem no sistema constitucional e autônomo da improbidade, com bases no atual modelo:

(i) o art. 1º agasalha todas as ilicitudes que violam a probidade na organização do Estado (na linha do artigo 37, §4º da CF), como forma de patrimônio público e social protegido na Constituição (artigo 129, inciso III, da CF)

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(ii) a lei consagra a improbidade como sistema normativo, pelo que não tolera contradições internas na sua formulação (art. 1º, caput), sendo que a defesa de que atos ofensivos aos princípios se resumiriam aos incisos arrolados no artigo 11 contraria a própria técnica legislativa, pela qual, nos artigos 9º e 10, não foram afetadas descrições gerais e especiais de atos que importam enriquecimento ilícito e de atos que causam dano ao erário;

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(iii) o caput dos artigos 9º e 10 possuem inegável capacidade de subsunção de condutas ilícitas, o que inexoravelmente se estende ao caput do artigo 11, vez que caracterizar ilícitos, em nenhuma forma de linguagem (comum ou técnica), possui o significado de restringir ou limitar o objeto, mas apenas indicar condutas específicas proibidas no tipo geral;

(iv) o novo parágrafo 1º do artigo 11 confirma e confessa a necessária  indeterminação da categoria dos atos ofensivos aos princípios da administração pública (nominadamente indicados, qual sejam a honestidade, legalidade e imparcialidade), quando se refere ao abuso de funções públicas, previsto na Convenção da ONU contra a Corrupção (artigo 19), internalizada pelo Decreto nº 5.687/2006.

(v) a indeterminação é reflexo do incontornável mandamento constitucional de legislar sobre a improbidade administrativa, sendo que, no terreno do DAS, há doutrina pacífica que  admite esta forma de tipicidade, que é supostamente inaplicável no Direito Penal. Desde sempre, o artigo 11 exige a regular demonstração a violação ao ordenamento, acrescida de qualificação que evidencia a ofensa ao bem jurídico.

(vi) foi reconhecido o vínculo umbilical entre o diploma normativo supralegal da Convenção de Mérida e a Lei de Improbidade, aperfeiçoando-se e atualizando-se a descrição do  artigo 11, inciso I, que remontava à Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), com o abuso de funções públicas, faceta de prática de corrupção, internacionalmente reconhecida como tal.

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Em rigor, o aprimoramento da redação do artigo 11 está, sob o ponto de vista da tipificação, além da explicitude do dolo, na exigência de que a conduta funcional do agente público nele subsumida deve demonstrar o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.

Promulgada a reforma da LIA, está na hora de olhar para a norma (significado normativo), e não para o emissor do enunciado ou sua vontade, que agora estão presos às circunstâncias do passado e nada mais podem fazer ou influir quanto ao conteúdo de destino da sua obra, a não ser prestar contas à sociedade brasileira pelo retrocesso jurídico-institucional que se buscou perpetrar.

Reconhecer a continuidade normativa típica para as condutas descritas em tipos amputados pela Lei nº 14.230/2021, e praticadas no passado, e revelar a manutenção da capacidade de subsunção do artigo 11, caput, da LIA, em interpretação sistemática da lei, e interpretação conforme à Constituição, constitui solução agasalhada pelo próprio sistema de responsabilização (artigo 1º), amparada nos princípios de direito administrativo sancionador, em torno dos quais gravita singularmente a improbidade administrativa (artigo 1º, §4º), afastando qualquer deficiência ou retrocesso na proteção de um dos mais valiosos bens jurídicos públicos ou meta-individuais - a probidade, em nosso sistema republicano e democrático.

*José Roberto Pimenta Oliveira, procurador regional da República em São Paulo. Professor de Direito Administrativo da PUC-SP

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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