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Reflexões sobre arte e democracia

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Por Rafael Augusto Camargo
Atualização:
Rafael Augusto Camargo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O sujeito está diante de uma folha ou de um muro. Espaços em branco como sinônimo de vazio? Há barulho de polícia, lata. Corre ou permanece em silêncio?

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Esse silêncio que precede o ato conta: a intencionalidade que antecede o que será registrado e o diálogo interno de um indivíduo pronto para se expor e preencher espaços estão ali. Mas se o espaço a ser preenchido for o humano? E se no silêncio que precede a criação existir um acordo mútuo que determina o que será dito?

Os desenhos mais antigos de que se tem registro têm 36 mil anos e estão na Caverna de Chauvet, na França. Sabe-se que os desenhos encontrados demonstravam a necessidade do homem em registrar o que sentia, o que vivia. Eram uma tentativa de controlar sua relação com o entorno e, ao mesmo tempo, manifestar seu desenvolvimento intelectual.

Há alguns anos anos, viajava com a família pela França e fui convidado a assistir um balé na Ópera de Paris. Um edifício lindo, historicamente palco de obras importantes da cultura de nosso tempo. Selfies para lá, filas educadas para cá e, assim que nos sentamos, quase que ao centro da grande plateia, olhei para o teto e segurei a respiração momentaneamente, engasguei-me.

Era torto, ingênuo, relapso, fora de lugar, algo quase marginal: no topo da Ópera de Paris estava uma pintura de Marc Chagall, pintor franco-russo judeu, contestado por registrar os contrastes sociais e religiosos. A obra, realizada em 1964, foi muito criticada à época e ainda por cima cobria um trabalho clássico anterior, de Jules Eugène Lenepveu.

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Todos os adjetivos acima, referentes à percepção da obra, demonstram e descrevem a minha ignorância quanto à história do devido trabalho e do artista. Não entrarei em detalhes, pois minha intenção é somente provocar a reflexão de quem chegou até aqui. É isso o que acontece quando estamos diante de uma interface: elas são diálogos entre sistemas. Se não dominamos os códigos, interpretamos do nosso jeito o mundo invisível que nos cerca. Um simples rabisco na parede esconde toda uma rede de relações, interpretada e realizada por cada um dentro de seu repertório.

Essa é uma das funções do design e da arte na atualidade: criar narrativas e interfaces em nossas relações e trocas com o mundo. Para o bem e para o mal. Em muros e prateleiras. No real e no virtual.

Voltemos ao momento do sujeito em frente ao muro. Ele não quer saber dos códigos, da Ópera de Paris, de Chagal ou falar sobre conceitos de design. Ele é resultado de uma rede invisível, espremido pela saturação informacional das grandes cidades. Então, não mais silencioso, grita!

Alguns reais depositados na lata e mentiras podem ser pichadas. Mas a verdade é que julgamos rapidamente. Admitir essa manifestação de arte sem que possamos compreender o vocabulário dói.  Quando Marcel Duchamp deslocou um mictório ("A Fonte") para dentro de um museu, queria questionar esse lugar de fala. Queria questionar a arte aceita.

A arte-lotação no ônibus cria o estresse e o abuso. A arte-multidão de carros cria o congestionamento e o xingamento móvel. Nossos excessos trazem dores, incômodos, berros. A arte se transforma, então, na interface entre os invisíveis e os letrados. O muro se torna a metáfora da democracia, da reunião de condomínio e aceita a diversidade de fontes.

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Que consigamos educar sujeitos para que seus gritos se transformem em narrativas construtivas e para que, no momento da criação, tenham menos dores para gritar, menos muros para quebrar. Que a tipografia torta e subjugada se transforme em mensagens de amor.

*Rafael Augusto Camargo é mestre em Educação e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)

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