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Reação à Lava Jato revive 'era Mãos Limpas'

Mudanças do projeto das 10 Medidas Contra a Corrupção na Câmara inauguram embate aberto entre Lava Jato e classe política e revelam relação da operação com a italiana Mãos Limpas

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Por Fabio Serapião
Atualização:

FOTO DIDA SAMPAIO/ESTADAO Foto: Estadão

As modificações no projeto das 10 Medidas Contra a Corrupção aprovadas pela Câmara dos Deputados na madrugada da quarta-feira, 30, e a tentativa de Renan Calheiros em impor urgência a votação do projeto no Senado escancararam o embate entre a classe política e a Lava Jato. Além de levar os procuradores da força-tarefa de Curitiba a sugerir uma possível renúncia aos cargos na força-tarefa caso o presidente Michel Temer sancione o texto como está, as mudanças apoiadas pelos partidos políticos, muitos deles com as cúpulas envolvidas no esquema de corrupção, guardam relação com o que ocorreu na operação Mãos Limpas, realizada na Itália na década de 90 e sempre utilizada em comparações com a Lava Jato.

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A investigação italiana começou em 1992, quando um diretor de instituição filantrópica de Milão foi preso. A partir da delação de Mario Chiesa - o Paulo Roberto Costa deles -, em dois anos, 2.993 mandados de prisão foram expedidos, 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares. No livro "Operação Mãos Limpas - a verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato", os jornalistas italianos Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio detalham o dia a dia da investigação italiana e revelam como a classe política tentou por várias vezes inviabilizar o trabalho do pool de investigadores e juízes.

Em um das passagens do livro de 887 páginas, os jornalistas italianos relatam qual era o cenário em 1993, início do segundo ano da investigação: "Em menos de dois meses, entre fevereiro e março, o governo Amato (Giuliano Amato, presidente da Itália à época) perde seis ministros (...) Entre os partidos começa a circular uma palavra de ordem: 'Solução política' para a Tangentopoli (o Petrolão deles). A investigação Mãos Limpas completou um ano e Palazzo (Palazzo Quirinale, residência oficial do presidente) tenta o contra-ataque: sabe que a opinião pública está do lado dos magistrados e o confronto direto não é possível. A maneira tradicional de conseguir anistia também é impraticável: em março de 1992, entrou a reforma do antigo 79 da Constituição, que elevou o quórum parlamentar para a concessão de anistia de 1/2 para 2/3. Então tenta-se uma intervenção de autossalvação com uma lei ordinária, quem sabe disfarçando-a de ajuda ao pool", relata o livro lançado no Brasil pela editora Citadel.

Tanto a sequência de acontecimentos - a seguida queda de 6 ministros - como a tática utilizada pelos políticos italianos são parecidas com a dos deputados brasileiros. A partir de uma proposta dos investigadores - no caso italiano uma proposta que nem foi para o papel -, os políticos legislaram de modo a criar empecilhos para a investigação. Na Itália, isso se deu por meio de quatro decretos e três projetos de lei que ficaram conhecidos como "pacote Conso", em alusão ao ministro Giovanni Conso, então titular da pasta de Justiça no governo do presidente Amato. No Brasil, os deputados utilizaram o projeto das 10 Medidas Contra a Corrupção formuladas pelo Ministério Público Federal para embutir propostas do interesse deles.

O pacote Conso, entre outras coisas, possibilitava a descriminalização do financiamento ilícito, aumentava a possibilidade de negociação em casos de corrupção e extorsão, facilitava a vida dos empresários envolvidos no pagamento de propina e instaurava a confidencialidade das investigações. Tal como cá, as negociações para a aprovação dos projetos de lei e validação dos decretos do executivo foram feitas a portas fechadas entre integrantes do governo e da "base aliada". Quando descoberta, a tentativa de "impor limites" às investigações tomou a página dos jornais e levou os integrantes do pool de investigadores da Mãos Limpas a uma reação incisiva.

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Enquanto o presidente Amato afirmava que o pacote Conso não era "um golpe de passar borracha" uma vez que foi feito "exatamente o que os juízes de Milão, Di Pietro e Colombo, nos pediram", o magistrado Gerado D'ambrósio, integrante do pool da Mãos Limpas, rebatia: "A classe política responsável por um sistema de propina decidiu absolver a si mesma".

Da mesma forma, desde a aprovação na madrugada de quarta-feria os políticos fizeram questão de defender as modificações, enquanto os procuradores, juízes e entidades de classe partiram para o ataque."Aqueles que queiram participar do processo legislativo, em 2018 nós teremos eleições, podem participar para estar aqui conosco, discutindo as matérias e aprovando as matérias", afirmou o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM)

Por sua vez, após sugerir a renúncia coletiva caso o presidente Michel Temer sancione o projeto de lei, o principal mentor da Lava Jato em Curitiba, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, disparou: "Eles aproveitaram projetos de combate à corrupção para se protegerem. O motivo é porque estamos investigando, estamos descobrindo os fatos". O coordenador e porta-voz da investigação, Deltan Dallagnol, seguiu a mesma linha e afirmou que as propostas "são a favor da corrupção. Dizem muito claramente a que vieram."

Na Itália, nos conta o livro de Barbacetto, Gomez e Travaglio, a reação dos investigadores refletiu-se em manifestações nas ruas das principais cidades do país. Dois dias depois das primeiras notícias sobre o pacote Conso mais de dez mil pessoas desfilavam em frente ao Palácio da Justiça, em Milão, em apoio aos investigadores e contra o "golpe de passar borracha" e o "governo de ladrões". O resultado foi a desistência do governo em bancar as propostas. No Brasil, o primeiro teste sobre como a população assimilou a atuação do Congresso será no domingo, 4, quando foram convocadas manifestações em várias cidades.

Entretanto, embora o pacote Amato-Conso não tenha prosperado, a classe política não desistiu. Nos anos seguintes, foram aprovadas várias leis que enfraqueceram o combate à corrupção e possibilitaram que muitos envolvidos em desvios passassem incólumes pela Mãos Limpas. No caso brasileiro, o presidente Michel Temer ganhou mais um tempo com a queda do pedido de urgência para votação das 10 Medidas no Senado, mas em breve terá de se posicionar se defende a posição dos políticos ou dos investigadores.

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