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Quem paga pelas perdas das distribuidoras com a pandemia?

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Por Diogo R. Coutinho
Atualização:
Diogo R. Coutinho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

É certo que um evento inaudito como a pandemia de covid-19 pode embasar um pedido, pelas distribuidoras, de Recomposição Tarifária Extraordinária (RTE) à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Mas isso não assegura nem justifica o pleito específico - por elas formulado - quanto à necessidade de se utilizar o faturamento previsto ou verificado no passado como parâmetro metodológico para a recomposição contratual. Caso contrário, a agência poderá promover indesejáveis e ilegais transferências de renda do consumidor para as empresas.

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Conforme recente reportagem do jornal O Globo, a expectativa das concessionárias é repassar aos consumidores, via tarifas, R$ 5 bilhões de perdas que teriam suportado no ano passado devido à pandemia. A justificativa é que, como a crise sanitária não estava prevista em suas matrizes de risco, seus efeitos devem ser integralmente absorvidos pelo poder concedente (o Estado), o que implica, em termos práticos, repassar a conta para o consumidor. Com base nisso, as empresas sustentam que a recomposição deve ser calculada pela diferença apurada entre o faturamento esperado em 2020 e o efetivamente realizado em cada área de concessão. O faturamento esperado, por sua vez, seria obtido como a média de crescimento de dez anos.

Na visão das distribuidoras, essa condição estaria lastreada pelo art. 37, XXI da Constituição Federal, que garante a manutenção das condições efetivas da proposta de licitação ao longo da execução dos decorrentes contratos de concessão. A fundamentação jurídica das empresas contempla ainda a Lei de Licitações, particularmente pelo art. 65, que determina, entre outros pontos, que alterações contratuais devem dar conta de efeitos produzidos por fatos imprevisíveis que configurem risco econômico extraordinário e extracontratual, casos esses em que a relação inicialmente pactuada pelas partes será restabelecida com o fim de manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

De fato, a pandemia efetivamente se caracteriza como uma ocorrência econômica extraordinária, o que, como a própria Aneel não deixa de reconhecer, justifica um processo de RTE. Mas evidentemente que isso não significa presumir que tal revisão deva ocorrer nos exatos termos - jurídicos e procedimentais - propostos pelas empresas envolvidas: é preciso demonstrar que a pandemia efetivamente causou determinados efeitos negativos. Tais efeitos, por sua vez, devem ser avaliados e quantificados pelo regulador, considerando inclusive a matriz de risco que compõe os contratos de concessão.

Nesse contexto, é preciso levar em conta que o regime regulatório adotado nas concessões de distribuição de energia no país segue o modelo de price cap, uma forma de regulação baseada em incentivos, e não a tradicional (e já superada) tarifação pela taxa interna de retorno (ou tarifação pelo custo do serviço), pela qual os preços (tarifas) devem remunerar os custos totais.

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No regime de price cap, define-se um preço-teto para os preços médios da firma. A correção desses preços é feita com determinada periodicidade, tendo como referência a evolução de um índice de preços ao consumidor do qual se subtrai um percentual associado à produtividade da empresa regulada - o fator X. Com regras relativamente simples e transparentes, esse método é visto como uma alternativa que proporciona o maior grau de liberdade de gestão possível para empresas em regime de monopólio natural, além de estimular ganhos de produtividade e sua transferência para consumidores.

Importante frisar, contudo, que o modelo de price cap tampouco garante ou assegura qualquer nível predeterminado de receita ao agente regulado. Isso significa que, ao tomar por base a perspectiva dinâmica dos ganhos de eficiência e de produtividade, o regime tarifário pode ocasionar aumentos ou mesmo reduções das tarifas. Por isso, uma empresa concessionária de energia elétrica pode se beneficiar de ganhos decorrentes do crescimento do mercado ou, analogamente, pode ter de arcar também com certas perdas decorrentes de sua redução.

Portanto, não é correto nem adequado partir da premissa de que todo e qualquer suposto impacto financeiro ou econômico negativo nas concessões no ano passado deva ser, de pronto, atribuído à pandemia e, consequentemente, ficar sujeito a quantificação para fins de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

Isso faz com que o pleito das distribuidoras não se sustente juridicamente. Na realidade, o dispositivo legal utilizado por elas como justificativa simplesmente aponta que os contratos podem ser alterados em caso de manifestação de álea econômica extraordinária e extracontratual. Daí se extrai, apenas e tão somente, que um evento como a pandemia pode ser objeto de recomposição. De maneira nenhuma, contudo, pode-se deduzir automaticamente qualquer orientação específica quanto à necessidade de se utilizar o faturamento previsto ou verificado no passado como baliza para a recomposição contratual, ao contrário do que parecem querer fazer crer as concessionárias. Caberá, portanto, à Aneel arbitrar a questão e estimar, com critérios próprios, robustos e transparentes, como se dará a recomposição tarifária em questão.

*Diogo R. Coutinho é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Este artigo é uma versão resumida de um parecer jurídico elaborado a pedido do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)

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