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Quem diz o que é imprescritível?

Por Raphael de Matos Cardoso
Atualização:
Raphael de Matos Cardoso. FOTO: DIVULGAÇÃO  

A Constituição Federal prescreve no §5º do art. 37 que: "A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento".

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Durante muito tempo esse comando foi objeto de intenso debate na doutrina - e ainda não deixou de ser. A leitura do dispositivo, para alguns, conduz à interpretação pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento; para outros, se fosse o caso de imprescritibilidade, o texto constitucional teria ressalvado explicitamente, como o faz para outras hipóteses, como aquelas referentes ao crime de racismo e à ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Após décadas de vigência da Constituição Federal, a questão foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no controvertido julgamento do recurso extraordinário n° 852.475, onde foi fixado o tema 897: "são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

Após longa discussão entre os ministros sobre a dúvida suscitada pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, todos entenderam que mesmo após prescrita a ação de improbidade, vejam só o contorcionismo, é possível o ingresso de ação de ressarcimento, com pedido declaratório, onde será discutida a prática do ato de improbidade dolosa, respeitadas, a rigor, todas as garantias do contraditório e da ampla defesa, mesmo que passadas décadas desde a prática do ato e prescrita a ação de improbidade. A declaração de improbidade será para fins exclusivamente de recomposição do erário em razão de dano causado pelo ato ímprobo. Pois bem. A questão da imprescritibilidade, bem ou mal, estava resolvida pelo STF, que já havia se manifestado anteriormente no julgamento do recurso extraordinário nº 669.069, onde fixou o tema 666: "é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

Malgrado a dupla manifestação do STF a respeito da matéria, remanescia ainda outra controvérsia, desta vez atinente à Súmula n° 282 do Tribunal de Contas da União (TCU), de seguinte enunciado: "As ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis". Em que pese as decisões precedentes do STF, outra lacuna precisou ser resolvida, sobre a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão do Tribunal de Contas. Novamente o STF se debruçou sobre a problemática, desta vez no recurso extraordinário n° 636.886, onde foi fixado o tema 899: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas".

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Para o TCU, todavia, as teses fixadas pelo STF formam uma grande colcha de retalhos. Isso porque no recente acórdão 7.687/2020, por exemplo, proferido pelo TCU após as decisões do STF, a Corte de Contas afirmou que "a interpretação meramente literal da tese do Tema 899 da repercussão geral, consubstanciada na prescrição quinquenal, não é correta, e eventual prescrição dos débitos apurados pelos tribunais de contas deve ser avaliada conjugando as teses fixadas no RE 636.886 e no RE 852.475, segundo o qual, são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao Erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

Aqui um pequeno parêntese. Notem que, não por acaso, o erário está grafado na decisão em letra maiúscula, a confirmar o sintomático tratamento conferido aos recursos públicos, resquício de um passado que nos assombra. O erário, no Brasil, se transformou em verdadeira entidade, acima de tudo e de todos, a justificar, inclusive, a imprescritibilidade que não ocorre sequer nos crimes praticados contra bens a princípio considerados mais relevantes, como a vida e a saúde.

A decisão do TCU, além de rejeitar a ordem da mais alta Corte da Justiça brasileira, avança no juízo sobre o ato de improbidade, o que sabidamente não está entre as competências que lhe foram outorgadas pela Constituição Federal. Além disso, ao unir os temas precitados (897 e 899) e adicioná-los na receita que resulta novamente na imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão do tribunal de contas, excluiu solenemente o principal ingrediente, o qual muda completamente o resultado, ingrediente esse visível no desenvolvimento do acórdão "leading case" do STF que deu origem ao tema 899 e incluído também na própria ementa da decisão, qual seja: "A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento".

Diante desse cenário e estado de coisas é possível dizer que, no Brasil, a segurança jurídica está mais situada na ficção do que na realidade, o que resulta num ambiente que não é propício à estabilidade e à confiança legítima.

Não se pode perder a compreensão a respeito da atividade dos tribunais de contas e da importância dos órgãos de controle. Todavia, é necessária cautelosa reflexão, especialmente a partir dos controladores, a respeito de qual a mensagem se pretende passar para a sociedade.

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O abuso do poder se manifestar nos mais variados domínios, inclusive no âmbito do controle, e ele sempre é justificado pelas mais nobres razões. No caso aqui descrito, parece que o erário recebeu status de instituição suprema no nosso sistema controlador e sancionatório. Transfigura-se em bem jurídico mais relevante que a própria vida.

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Pela sua capacidade técnica e operacional, o Tribunal de Contas da União poderia dedicar seus esforços e sua atenção às ferramentas de consensualidade, contribuindo com o direito sancionador responsivo e dialógico, para se distanciar e deixar para trás os ranço de autoritarismo e do viés puramente punitivo, que marca a ausência de preocupação com o incentivo de comportamentos e com a real finalidade e potencial da sanção.

*Raphael de Matos Cardoso, doutorando em Direito do Estado pela USP. Professor. Advogado no MZBL - Marzagão e Balaró Advogados. Diretor de Relações Institucionais do IDASAN - Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro

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