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Quando o povo quer

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Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Episódios de heroísmo individual não faltam ao Brasil. Numa nação iniquamente desigual, são heróis os que conseguem sobreviver, a despeito das condições sub-humanas. Sem teto, sem trabalho, sem pão. Há milhões nessa condição. Não se vislumbra consciência coletiva posta em ação para sanar essa triste anomalia.

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Na versão macro, todavia, não sobram exemplos que evidenciem excepcional coragem gregária. Manifestações padronizadas e facilitadas pelo chamamento eletrônico, reúnem por breve lapso temporal milhares ou até milhões, para imediata dispersão depois de algumas horas.

A vibração é relativa, não chega a empolgar como no futebol, que já foi a grande paixão brasileira. Hoje, talvez substituída pela litigância - quem é que não processa ou está sendo processado em juízo? - e pela difusão de desinformações, as mais variadas.

O brasileiro, como povo, não teve de arrostar perigos que importassem no sacrifício da própria vida, como ocorre em outras latitudes. Não é necessário buscar precedentes remotos, mas basta encarar o que outras pátrias têm sofrido, para a constatação que pode revestir várias tonalidades. Haverá os que nos considerem privilegiados, abençoados. Mas também aqueles que poderão indagar se ao nacional sobra ou falta coragem, destemor e audácia patriótica.

Um bom exercício de reflexão é assistir ao documentário "Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom" (Inverno no fogo: a luta da Ucrânia por liberdade", realizado por Evgeni Afineevski e disponível na Netflix. É impressionante verificar como os ucranianos não hesitaram em testemunhar o seu apreço pela liberdade, a um custo que se mostrou por demais elevado.

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Considerando-se libertos da opressão soviética, pretenderam ingressar na Comunidade Europeia, o que lhes fora prometido. Só que o Presidente Viktor Ianukovich preferiu aliar-se à Rússia. Recusou-se a assinar o acordo de ingresso à união dos países do Velho Continente interessados em estabelecer uma comunhão de vida, muito mais do que investir em acordos comerciais e financeiros.

Famílias inteiras foram para a praça mais famosa de Kiev, a capital da Ucrânia e cantaram hinos, fizeram apelos. Tudo isso aconteceu outro dia mesmo, já no século 21: novembro de 2013. O movimento cresceu, porque a população sabia o que adviria de cada opção política.

Persistiu nas manifestações e elas perduraram. O inverno converteu essa vigília permanente numa aventura perigosa. Era necessário agasalhar e alimentar milhares de pessoas, algumas idosas, muitas crianças. Para demonstrar o empenho que as movia, levaram deficientes em suas cadeiras de roda.

O governo reagiu com perversa brutalidade. Primeiro a tentar a desocupação do espaço, utilizando-se de cassetetes de ferro, quando a praxe era servir-se de objetos menos letais, os similares de plástico. Muitas pessoas ficaram feridas. Algumas gravemente.

À medida em que a adesão ao protesto ganhava força, com a chegada de ucranianos de todo o país, a reação governamental recrudesceu. Gás de efeito moral, gás lacrimogênio, e outros presentes foram oferecidos ao povo na praça. Não satisfeito, o Presidente autorizou o uso de armas com projéteis de borracha, com mal disfarçada e parcial substituição por balas de verdade.

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É constrangedor verificar as cenas reais em que mães idosas conclamavam os soldados a não atirarem contra seus irmãos, a pensarem naquilo que as professoras os ensinaram quando crianças. Exortavam a milícia enfurecida a um ato nobre de desobediência a ordens ilegais e criminosas.

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Nada arrefeceu a deliberada intenção de manter a postura presidencial, nada obstante a vontade da imensa maioria dos ucranianos.

Foram noventa e três dias de concentração no centro de Kiev, com breves deslocamentos até à sede do Parlamento e da Presidência da República. O Mosteiro de São Miguel, com suas múltiplas torres douradas, serviu de refúgio e hospital. O conjunto de seus sinos, que não tocara desde 1240, quando da invasão mongol, lembrava à Ucrânia que seu povo estava sendo assassinado.

Somente em fevereiro de 2014, após cerca de 125 mortes, 65 desaparecimentos e milhares de feridos, foi que o Presidente fugiu para a Rússia. É um espetáculo edificante aquele documentado pelos ucranianos, de resistência à imposição autoritária desconforme com o legítimo anseio por liberdade. Algo que deveria motivar todos os seres humanos.

A Ucrânia tem uma história de sofrimento, mas de elevada consciência patriótica. Mostrou que há caminhos de oposição ao autoritarismo, embora sejam dolorosos. Ainda existem no mundo, a despeito de estar impregnado por interesses materiais, consumismo e exacerbado individualismo, ideais intangíveis, valores insuscetíveis de transigência e sua defesa legitima o sacrifício da própria vida.

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*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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