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Quando a liberdade de expressão vira questão de segurança nacional

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Por Allan Carlos Moreira Magalhães
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Allan Carlos Moreira Magalhães. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

A Lei de Segurança Nacional (LSN) surgiu num momento histórico cheio de contradições, pois foi promulgada por um governo não eleito e, portanto, não democrático. Com a redemocratização ocorrida com a promulgação da Constituição de 1988, a contradição se aguça, pois a adoção no presente da LSN visa proteger uma realidade não vivenciada na época da sua promulgação, qual seja, um regime representativo e democrático.

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A democracia era tão desconhecida na época da promulgação da referida lei (1983) que a palavra "democrático" é usada, uma única vez, para anunciá-la como objeto de proteção. Mas, na parte que trata dos crimes e das penas, a proteção almejada é da ordem e do status quo e não da democracia.

A LSN, contudo, tem ganho notoriedade na imprensa, sendo frequentemente utilizada como fundamento jurídico para a abertura de investigações com base numa interpretação extensiva do Art. 26 da referida lei que considera crime "caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação".

A imprensa noticia a existência de 20 pessoas atingidas por investigações amparadas na referida lei. A maior parte delas envolve os tipos penais de calúnia e difamação.

É difícil enxergar que postagens em redes sociais, jornais ou mesmo outdoors, com críticas aos chefes dos três Poderes sejam, por si só, uma ameaça à segurança nacional. E, neste aspecto, a referida Lei revela uma maior preocupação com a proteção das autoridades políticas do que com a própria democracia.  Por isso, está em descompasso com a Constituição de 1988.

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É preciso analisar com atenção todos os casos para aferir quais não se limitaram ao exercício da liberdade de expressão, mas tendo em mente que, de acordo com Ronald Dworkin, "em uma democracia, ninguém, independentemente de quão poderoso ou importante seja, pode ter o direito de não ser insultado ou ofendido". (1)

Os embates entre aqueles que criticam e os que são criticados não é uma novidade na história da humanidade. Georges Minois, em seu livro, "História do riso e do escárnio" (2), relata que nem o Imperador Romano Júlio César escapou das sátiras que lhe eram dirigidas, e nem o filósofo grego mais famoso, Aristóteles, conseguiu ficar imune às provocações de Aristófanes, considerado o pai da comédia.

No entanto, Aristófanes, a exemplo do que ocorre com alguns críticos de figuras importantes no cenário político atual, também sofreu com as tentativas de imposição de limites ao seu riso, especialmente, pelos políticos atenienses que não admitiam ser expostos ao ridículo, sob o argumento de representarem o povo.

Com isso, os autores cômicos despertavam a ira dos políticos atenienses, chegando, inclusive, ao ponto de Alcibíades aprovar, no fim do Século V a. C. quando a democracia ateniense entra em crise, uma lei proibindo zombar abertamente dos políticos no teatro.

Assim, é necessário entender que a LSN é uma norma excepcional e como tal deve ser utilizada apenas em situações extremas que ponham em risco a democracia, a soberania nacional, a integridade do território e a pessoa dos chefes dos Poderes da União. Mas apenas quando se estiver diante de uma ameaça real, pois o uso indiscriminado desta norma pode ser uma ameaça à própria democracia pela restrição indevida à liberdade de expressão.

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A liberdade de expressão é essencial e condição de possibilidade para toda democracia, pois ela assegura que ideias e opiniões não sejam excluídas do debate público que é a forma mais legítima para lidar com assuntos de interesse da coletividade. Mas, assim como todo e qualquer direito, ela possui limites que são os princípios que regem a vida em coletividade como a própria liberdade dos demais indivíduos e a dignidade da pessoa humana.

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No entanto, é preciso ter em mente que as pessoas públicas, em especial, aquelas que exercem elevados cargos públicos como os chefes dos Poderes que envolvem grandes responsabilidade e atribuições para com a nação, e por isso são mais cobrados e exigidos, não podem tornar as críticas ou as posições contrárias aos seus atos como ofensiva a sua honra, especialmente para ensejar a persecução penal com base na Lei de Segurança Nacional.

Logo, as sensibilidades das pessoas públicas para com a sua honra não podem ser semelhantes às das "pessoas comuns", pois ao escolherem a vida pública aceitaram os ônus e os bônus, os aplausos e as vaias, as aprovações e as críticas.

*Allan Carlos Moreira Magalhães, doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais

(1) DWORKIN, Ronald. The right to ridicule. The New York Review of books. march, 2006. Disponível em:

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http://blogs.ubc.ca/alejandrabronfman/files/2013/08/The-Right-to-Ridicule-by-Ronald-Dworkin-The-New-York-Review-of-Books.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2021. No original: "So in a democracy no one, however powerful or impotent, can have a right not to be insulted or offended".

(2) MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.

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