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Projeto de lei preserva as relações contratuais durante a pandemia

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Por Tiago Asfor Rocha Lima e Gustavo Favero Vaughn
Atualização:
Tiago Asfor Rocha Lima e Gustavo Favero Vaughn. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n. 1.179/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSD/MG), que institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulamentação de relações jurídicas no período da pandemia do novo coronavírus (covid-19). Há possibilidade de o projeto ser votado já na próxima sexta-feira, dia 3 de abril.

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Esse projeto, inicialmente, parece bem-vindo na atual conjuntura. Isso porque contempla disposições relevantes a fim de preservar as relações jurídicas de direito privado durante a crise viral que assola o Brasil e o restante do mundo, na linha de recentes iniciativas parlamentares de outros países afetados, a exemplo da Alemanha.

No âmbito do direito civil, muito tem se falado sobre os impactos da pandemia nos contratos em vigor. O referido projeto, atento aos anseios populares, preocupou-se com tal questão, dedicando o Capítulo IV ao tema da resilição, resolução e revisão contratual.

O primeiro dispositivo inserido no mencionado capítulo prevê que as consequências advindas da pandemia do coronavírus nas execuções dos contratos, inclusive aquelas que possam ser caracterizadas como caso fortuito ou de força maior, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Em outras palavras, isso significa dizer que a "crise do coronavírus" não poderá ser invocada por quem quer que seja como razão para inadimplir obrigação contratual vencida antes do início da pandemia, que o projeto indica ser o dia 20 de março.

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O segundo dispositivo de antemão estabelece que o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição do padrão monetário nacional não serão considerados fatos imprevisíveis para fins exclusivos de aplicação das regras do Código Civil que dizem respeito à onerosidade excessiva.

Ou seja: tais eventos não poderão embasar pedidos de resolução ou revisão contratual, pois o legislador a priori os excluiu do conceito de fato imprevisível, um dos requisitos necessários para postular em juízo com lastro na onerosidade excessiva. Nesse ponto, o projeto claramente preserva o pacta sunt servanda e garante a liberdade no exercício das atividades econômicas, ambos reforçados na Lei da Liberdade Econômica (Lei n.º 13.874/2019).

Segundo o projeto de lei, essa restrição quanto à imprevisibilidade se aplica apenas às relações jurídicas tuteladas pelo Direito Civil, estando fora disso as relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei do Inquilinato. A provável justificativa para isso é proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade.

Por tal razão, o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição do padrão monetário nacional poderão ser levados em consideração para fins de aplicação das normas de revisão contratual dispostas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei do Inquilinato. Lembre-se que é direito básico do consumidor a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em virtude de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, assim como é possível, em relações locatícias, postular a revisão do aluguel para ajustá-lo ao preço do mercado.

O projeto é didático até demais ao estabelecer que as normas de proteção ao consumidor são inaplicáveis às relações contratuais subordinadas ao Direito Civil, incluindo nessa limitação as relações firmadas exclusivamente entre empresas ou empresários.

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Além disso, lê-se da exposição de motivos que os "efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou de força maior." Porém, não se chega a essa mesma conclusão pela análise do projeto, mesmo que grande seja o esforço interpretativo nesse sentido.

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Em nenhum momento faz-se a equiparação dos efeitos da pandemia a caso fortuito ou de força maior, embora haja referência ao artigo 393 do Código Civil, que versa sobre esse tema. O que faz o projeto, ao menos tal como está posto em sua redação original, é vedar a retroatividade dos efeitos da pandemia na execução dos contratos e proibir a definição de certos eventos do mercado financeiro como fato imprevisível para fins de aplicação da teoria da onerosidade excessiva.

Aliás, seria equivocado determinar, por lei, que os "efeitos da pandemia" fossem equiparados a caso fortuito ou de força maior. Essa equiparação em abstrato não seria condizente com a melhor técnica legislativa. Isso porque não se sabe ao certo e nem o projeto delimita quais seriam os ditos "efeitos da pandemia." O emprego de termos amplos e genéricos, que remetem a ideia das cláusulas gerais, poderia, nessa hipótese, mais prejudicar do que facilitar a preservação de relações jurídicas, dando uma espécie de carta branca para que os contratantes requeiram alterações contratuais com base apenas na pandemia em si, independentemente de seus reflexos no cumprimento de obrigações específicas.

Eventual dificuldade ou impossibilidade de adimplemento de prestação obrigacional deverá ser examinada casuisticamente, à luz das especificidades de cada caso concreto, de cada contrato. E, nesse tocante, caberá à parte interessada fazer prova de suas alegações, demonstrando em juízo (estatal ou arbitral) os prejuízos que afirma ter sofrido por conta de algum evento oriundo da pandemia do novo coronavírus. Trata-se de regra básica de ônus probatório, que encontra respaldo na lei processual civil.

Feita a comprovação do quanto alegado, aí sim poderá ser discutida o fim ou a revisão do contrato à luz da ocorrência, por exemplo, de fato necessário inevitável ou de evento imprevisível que causa onerosidade excessiva a um dos contratantes. Não há que se falar em aplicação automática nos contratos civis ou comerciais dos efeitos de institutos jurídicos complexos.

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Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Contudo, não se pode perder de vista que, na esfera do Direito Civil, a liberdade contratual deve ser exercida nos limites da função social do contrato, sendo mínima a intervenção nos pactos celebrados entre particulares.

Se aprovado o projeto, o que provavelmente ocorrerá, caberá ao Poder Judiciário, com a necessária parcimônia, definir os limites e alcance da legislação que se avizinha, devendo ter sempre em conta que o que está em jogo é o próprio equilíbrio do mercado e a tão questionada segurança jurídica do sistema.

*Tiago Asfor Rocha Lima é sócio de Rocha, Marinho & Sales Advogados, mestre em direito público pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutor em direito processual pela Universidade de São Paulo. Foi Visiting Scholar na Columbia Law School/New York e juiz eleitoral (Jurista) do TRE-CE (2017-2019). É presidente do CESA/CE (Centro de Estudos de Sociedades de Advogados, Seccional do Ceará)

*Gustavo Favero Vaughn é associado de Cesar Asfor Rocha Advogados e mestrando em direito processual pela Universidade de São Paulo

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