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Procuradoria denuncia ex-comandante do Doi e legistas por tortura e morte de 'Lúcia' do PCB na ditadura

Audir Maciel é acusado de homicídio qualificado da militante Neide Alves dos Santos, a 'Lúcia', presa na Operação Radar, no fim de 1975; o ex-diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo Harry Shibata e Pérsio Carneiro foram denunciados por falsidade ideológica por supostamente forjaram laudo necroscópico

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Por Pepita Ortega
Atualização:

Neide Alves dos Santos, morta em 1976 - Foto: memoriasdaditadura.org.br

O Ministério Público Federal denunciou o ex-comandante do Destacamento de Operações e Informações (Doi-Codi) em São Paulo Audir Santos Maciel e os médicos legistas Pérsio José Ribeiro e Harry Shibata por suposto envolvimento na morte da integrante do PCB Neide Alves dos Santos, em 7 de janeiro de 1976.

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Maciel é acusado de homicídio qualificado. Segundo a Procuradoria, ele participou da Operação Radar, que resultou na captura e na morte de Neide.

Shibata e Carneiro são denunciados por falsidade ideológica, 'uma vez que forjaram o laudo necroscópico para atestar que as extensas queimaduras identificadas no corpo da vítima seriam fruto de suicídio por ateamento de fogo'.

As informações foram divulgadas pela Assessoria de Imprensa da Procuradoria.

"Aversão do suposto suicídio foi forjada para justificar o homicídio da vítima. E mais: o laudo foi propositadamente omisso, visando dificultar as apurações das verdadeiras circunstâncias da morte e seus autores", afirma o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, que assina a denúncia.

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O procurador assinala que 'não cabe prescrição ou anistia no caso, pois a morte de Neide ocorreu em contexto de ataque generalizado do Estado brasileiro contra a população civil e, assim, constitui crime contra a humanidade'.

Andrey pede, além das penas de prisão, que os denunciados percam medalhas que eventualmente tenham recebido pelos serviços prestados à repressão política e que sejam canceladas aposentadorias que recebam em decorrência das funções que exerciam naquele período de exceção.

Neide integrava o setor de agitação e propaganda do PCB, legenda contrária à luta armada como método de oposição à ditadura.

Ela desapareceu em 30 de dezembro de 1975, após ser presa três vezes no mesmo ano, 'sempre liberada com sinais de tortura'.

 Foto: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo

Dados oficiais indicam que na madrugada de 31 de dezembro daquele ano, Neide, moradora da Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo, foi levada ao Hospital Municipal do Tatuapé, na zona leste, devido a queimaduras que havia sofrido.

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Os familiares só foram comunicados que a militante estava em estado grave no dia 8 de janeiro de 1976, quando ela já estava morta.

Segundo a Procuradoria, a irmã e o cunhado de Neide, que viviam no Rio de Janeiro, só receberam a notícia da morte após responderem a um interrogatório.

O enterro foi realizado no dia seguinte, sob vigilância de agentes da repressão e sem possibilidade de abertura do caixão.

A Procuradoria relata que a militante foi uma das 19 vítimas da chamada Operação Radar, coordenada pelo Doi-Codi do antigo II Exército entre 1973 e 1976 para a eliminação de quadros do PCB em todo o país.

Não há notícias em jornais da época sobre a morte de Neide, aponta a Procuradoria. "Seu assassinato ocorreu dois meses após o caso Vladimir Herzog, cuja repercussão levou o aparato repressivo a buscar discrição total para os novos episódios de extermínio de opositores."

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Omissões

Segundo o MPF, o fato de não haver sinais de queimadura na face ou nos cabelos de Neide foi ignorado pelos médicos legistas que fizeram a análise do corpo.

Além disso, 'os legistas não abriram o cadáver nem procuraram detalhar as condições em que as lesões foram provocadas, apenas indicando que o óbito foi causado por queimaduras generalizadas'.

"O teor do laudo necroscópico é apenas uma das evidências de que Neide foi assassinada por agentes da ditadura, cuja responsabilidade eles procuravam omitir. A versão de suicídio não está amparada em inquérito sobre as circunstâncias da morte, que aliás nunca foi instaurado. Até os dados oficiais sobre o encaminhamento ao hospital apresentam brechas e contradições", diz o Ministério Público Federal.

Ocorrência registrada em uma delegacia na Freguesia do Ó, bairro a 15 quilômetros do Tatuapé, indica a apreensão de um caderno que estaria com Neide, sem avarias, onde haveria detalhes sobre o PCB e o codinome da militante, 'Lúcia'.

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A ficha de Neide nos órgãos de repressão não mencionam o volume, mas registram um bilhete que ela teria deixado contendo informações sobre integrantes do partido, diferentes daquelas que constariam no suposto caderno.

O procurador destaca que a perícia no corpo de Neide foi realizada a partir de duas requisições policiais.

Na primeira, o delegado que assinou o documento apresentava poucas informações da ocorrência e dispensava a elaboração de laudo pelos legistas, indicando tratar-se de 'morte natural', apesar das evidentes marcas de queimadura.

Na segunda, o laudo foi solicitado e trazia a letra 'T' ao lado do nome de Neide. Segundo a Procuradoria, o símbolo era usado por autoridades para identificar como 'terroristas' os opositores mortos, e indicava que a análise do caso 'deveria resultar em conclusões falsas para desvincular o óbito da prática de tortura e homicídio e evitar que agentes fossem incriminados'.

Segundo o procurador Andrey Mendonça, o legista Harry Shibata, então diretor do Instituto Médico Legal e próximo de Audir Maciel, 'deu sequência à indicação da requisição policial'.

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Pérsio Carneiro foi o médico designado para o caso e, segundo o procurador, já havia participado da elaboração de outros relatórios falsos.

"O laudo é propositadamente sumário e tecnicamente insatisfatório, pois não esclarece como se espalharam as lesões e qual a origem das queimaduras. Não procurou vestígios de vestes queimadas nem fez o exame interior do cadáver", destacou Andrey Mendonça.

COM A PALAVRA, A DEFESA

A reportagem busca contato com a defesa de Audir Maciel e dos legistas Harry Shibata e Pérsio Carneiro. O espaço está aberto para manifestações.

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