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Privilégios digitais

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Por Eduardo Mendonça
Atualização:
Eduardo Mendonça. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O chamado Projeto de Lei das Fake News surgiu com o propósito declarado de combater a desinformação na internet. Embora se proponha a regular novas realidades, a proposta corre o risco de incorrer em uma das mais tradicionais mazelas da política brasileira: a compulsão por privilégios.

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O projeto já vinha sofrendo sucessivas emendas para incorporar frentes que, em vez de facilitarem, dificultam o combate à desinformação. Uma das inovações mais recentes aprofunda o problema. Nos termos do art. 22 do atual texto, os provedores de redes sociais teriam de conceder tratamento especial às contas pessoais de um amplo conjunto de agentes públicos dos três poderes da República, nas esferas federal, estadual e municipal, passando também por todos os membros das Forças Armadas e até mesmo presidentes, vice-presidentes e diretores de empresas públicas e outras entidades da Administração Pública indireta.

O projeto de lei estabelece que, caso essas contas publiquem conteúdo que viole as regras comuns a todos os usuários, a remoção teria de ser acompanhada da divulgação de "notificação pública e fundamentada, apontando a cláusula aplicada de suas regras e o que deu causa à decisão". Essa exigência transformaria a relação privada entre as plataformas e esses usuários em uma forma inusitada de embate público. O resultado inevitável seria tornar quase proibitiva a aplicação das regras comuns pelas plataformas a esse conjunto de usuários. E, nos casos em que as regras fossem aplicadas, haveria relevante risco de exploração política dos episódios por adversários ou mesmo pelo próprio usuário envolvido, alimentando polarizações, desinformação e teorias conspiratórias.

Adicionalmente, ao tratar da possibilidade de intervenção do Judiciário, o projeto prevê obrigar as plataformas a restabelecerem conteúdos quando seja atestada a sua "conformidade com direitos fundamentais e com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". A medida poderia ser invocada para blindar os agentes públicos contra a remoção de qualquer conteúdo que não seja objetivamente ilegal, mesmo quando viole gravemente as regras de convivência aplicáveis aos usuários "não especiais". A título de exemplo, algumas das plataformas mais populares vedam representações gráficas de violência ou de pessoas ferindo a si mesmas, ou ainda mensagens de assédio ou incitação à violência. Não porque esses conteúdos sejam necessariamente ilícitos, mas porque não correspondem às expectativas legítimas da imensa maioria dos usuários. As próprias políticas relacionadas à Covid poderiam ser afetadas, como as que vedam desinformação sobre campanhas de vacinação.

No caso de deputados e senadores, consta ainda a previsão de que a imunidade parlamentar material deve ser estendida às redes sociais, o que parece oscilar entre o inócuo e o absurdo. A medida seria apenas inútil como reafirmação de que as falas de interesse público estão cobertas pela imunidade para os fins e nos termos já prescritos pela Constituição, mas seria insólita caso pretenda significar que parlamentares devem ser imunizados de previsões contratuais em plataformas privadas, ganhando o direito de violar as regras comuns de interação que se aplicam a todos os usuários.

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Os problemas dessa iniciativa são evidentes. Não há qualquer fundamento republicano para que agentes públicos recebam tratamento privilegiado em interações pessoais que se proponham a manter em plataformas privadas na internet. Além disso, no mundo real, os efeitos prováveis desse privilégio seriam nefastos. De um lado, a burocracia aumentada e a politização da aplicação das regras de uso das plataformas seria incompatível com a dinâmica e a velocidade das redes sociais, potencializando a replicação de conteúdos irregulares. De outro lado, os termos vagos da referência a uma proteção judicial diferenciada dariam margem a todo tipo de interpretação, incluindo o já referido risco de blindagem contra a aplicação das políticas comuns a todos.

Também, aqui, a deterioração das plataformas se daria em cascata: se um conteúdo deve ser mantido em determinada conta a despeito de violar as regras da comunidade, como impedir eficazmente que seja replicado em outros perfis? Na prática, seria criada uma casta de super usuários, dotados do privilégio de introduzir nas plataformas conteúdo incompatível com as regras aceitas por todos os demais. O problema é agravado pelo fato de que, como regra, campanhas de desinformação e outras formas de conteúdo tóxico ganham corpo justamente quando são difundidas por perfis de grande visibilidade ou que lhes possam conferir certo ar de seriedade. Eis um possível desfecho melancólico a rondar o chamado projeto das fake news: o de que se converta no estatuto da desinformação oficial e oficialmente protegida.

*Eduardo Mendonça é professor titular de Direito Constitucional e de Direito Digital do Centro Universitário de Brasília e sócio do escritório BFBM com atuação em temas ligados à liberdade de expressão na internet

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