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Prisão cautelar deve ser medida excepcional

Por Adib Abdouni
Atualização:
Adib Abdouni. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A prisão cautelar decretada por um magistrado de primeira instância em desfavor do ex-presidente da República Michel Temer era um capítulo esperado, desde sua recente saída do Palácio do Planalto, ante o desaparecimento das prerrogativas constitucionais do cargo, que lhe asseguravam não ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções presidenciais.

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A sua soltura, de outro lado, ganhava as bancas de apostas, na discussão fervorosa de qual ministro do Supremo Tribunal Federal estaria prevento para decidir os destinos de sua liberdade, sob a incredulidade de que a segunda instância da Lava Jato no Rio de Janeiro reverteria a ordem prisional.

Ledo engano.

O desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região - magistrado de carreira -- chamou para si a responsabilidade de decidir e retirou de pauta o julgamento dos habeas corpus impetrados pelos réus, marcado para o dia 27.03.19, e revogou as prisões.

Decisão essa que casou perplexidade a parcela significativa da sociedade, sob a perspectiva de ter havido eventual dissipação do cenário jurídico dantes fixado pela Justiça Federal de Curitiba-PR, tendo em vista que dissociada das decisões lá produzidas -- e mantidas em grau recursal --, contra grandes personalidades da elite política brasileira, acostumadas a estarem protegidas pela impunidade própria das sombras dos subterrâneos do poder.

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Sob essa ótica, acreditou-se estar em risco a consolidação definitiva do postulado republicano segundo o qual ninguém está imune à investigação criminal, deflagrada com o fito de apurar os fatos a partir de indícios do cometimento de atos penalmente reprováveis, o que denotava, até então, que as instituições democráticas brasileiras estavam funcionando bem.

Não é o que ocorre.

Independentemente da figura personalizada alvo da persecução penal ou de sua coloração ideológica partidária política, a prisão cautelar deve ser compreendida como medida excepcional, posto que sua aplicação não tem o condão de implicar em antecipação de culpa ou de juízo prévio de condenação, a exigir, seu deferimento, a presença efetiva dos seus requisitos autorizadores.

E quais são esses requisitos?

O artigo 312 do Código de Processo Penal responde a questão: a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

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Nessa linha, para a validade jurídica da prisão preventiva, deveriam estar aparentes as exigências legais e taxativas da cautelar, a obstar a hipótese do emprego não fundamentado de argumentos meramente especulativos, acerca da necessidade de garantia da ordem pública, sob a genérica fundamentação da gravidade dos fatos criminais narrados ou do risco hipotético da reiteração das práticas criminosas investigadas.

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Deveras, no caso em testilha, a leitura singela da decisão judicial do juiz federal de primeira instância -- materializada em 46 laudas -- a determinar a prisão preventiva de Michel Temer --, demonstra -- com assombro -- que lá, os aludidos requisitos não se fazem presentes.

A decisão -- habilmente revogada -- mostra-se impregnada de incompreensível subjetivismo -- haja vista que prolatada por um profissional do Direito da mais alta estatura --, cuja imprecisão é denotada por argumentos meramente especulativos, acerca da necessidade de garantia da ordem pública, sob a genérica fundamentação da gravidade dos fatos criminais narrados ou do risco hipotético da reiteração das práticas delituosas, e isso, em momento sobejamente posterior à deflagração do procedimento investigatório em curso e, principalmente, do nascedouro dos fatos investigados.

A dúvida cristalizada na indigitada decisão, por si só, traz à tona a incorreção do que decidido conta o ex-presidente, o que -- anote-se -- deve ser analisado sob o enfoque garantista a favor de qualquer cidadão brasileiro.

Do contrário, caminharemos para um retrocesso incomum em detrimento das modernas liberdades democráticas, que visam assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais de segurança, igualdade e justiça enquanto valores supremos de uma sociedade pluralista.

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A bom tempo, o relator do habeas corpus cuidou de refrear essas inconsistências, a fim de restaurar a ordem jurídica democrática que veda a antecipação de culpa e o uso indiscriminado das prisões cautelares, com o notável registro de que não se trata de firmar uma oposição aos bem feitos obtidos com a operação Lava Jato, mas sim, de impedir que o açodado implemento de decisões judiciais em desfavor dos acusados ostentem contornos de violação às regras constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, a fim de evitar o maltrato ao princípio segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Vale dizer, infelizmente, instalou-se no Brasil um quadro de Estado policialesco -- com ultrapassagem generalizada dos limites elementares do poder estatal de vasculha --, onde primeiro se prende -- mediante a estratégia antidemocrática da sanção corporal cautelar --, com o desvirtuado objetivo de conferir uma imediata resposta estatal à sociedade (justificadamente sedenta por justiça) ou então de se obter uma delação premiada, ou ainda, para empregar, à ordem judicial de aprisionamento, por via oblíqua, nítidos contornos de espetacularização desnecessária da imagem do investigado.

E isso em flagrante desrespeito ao comando constitucional de proteção à dignidade da pessoa humana, à míngua da preservação da integridade da imagem e da moral do investigado -- não condenado -- (Constituição Federal, artigo 1.º, inciso III e artigo 5.º, incisos III e X), a resultar na ocorrência de abuso, e, por conseguinte, de repugnável conduta arbitrária, exposta de forma contrária ao direito posto.

É que a prisão preventiva, como se disse alhures, deve ficar adstrita para as hipóteses em que a análise dos fatos revelem, no caso concreto, presente a prova da materialidade e dos indícios de autoria do delito, que mecanismos outros de preservação da investigação não se mostrem aptas a refrear potencial risco à ordem pública, a atrair a percepção da presença robusta dos requisitos legais do fumus boni iuris e o do periculum in mora, sob pena de subverter o princípio da presunção da não culpabilidade, insculpido no artigo 5.º, inciso LVII, da Carta da República, em inegável sacrífico injustificado do direito de liberdade de locomoção do investigado.

Ainda mais quando inexistente a contemporaneidade dos fatos narrados com a decisão judicial, a denotar não ocorrente qualquer evidência de reiteração criminosa a ser obstada pela prisão preventiva.

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Tudo porque a Carta da República estabelece como regra geral a presunção de inocência (garantia fundamental), de molde que enquanto houver dúvida razoável, a garantia desse postulado constitucional deve ser preservada, sob pena de enfraquecer o próprio estado democrático de direito.

Assim, seja em relação ao ex-presidente Michel Temer ou a qualquer um de nós, as prisões cautelares não podem ostentar eficácia alguma no plano jurídico-processual se não forem observadas por seus aplicadores as precauções mínimas necessárias que visem resguardar a licitude de seu acionamento, a refrear abusos e exageros que os possam impulsionar prisões preventivas generalizadas, destituídas de fundamentos autorizativos mais sérios, a desaguar em violação ao direito fundamental ao devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, sem que antes disso existam provas ou indícios outros a robustecer seu conteúdo qualificado como detentor de provas irrefutáveis contra os investigados.

*Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista

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