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Primeiro como tragédia, depois como farsa: quando a regulação quer travar a inovação no transporte

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Por Daniel Becker , João Pedro Brígido e Natasha Rojtenberg
Atualização:
Daniel Becker, João Pedro Brígido e Natasha Rojtenberg. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Quando nos deparamos com as tentativas de determinados agentes em frear o avanço da Buser, somos acometidos por um estranho sentimento de déja-vù. Mas não há nada de sobrenatural nisso. Hoje, assistimos novamente a uma batalha de alguns sátrapas e neoludistas contra a mobilidade e, dessa vez, o alvo é a plataforma Buser. E a regulação intervencionista, como dito Karl Marx sobre a História, se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.

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Símbolo da democratização digital e da economia compartilhada, a Buser nasceu em junho de 2017 com o propósito de reunir um grupo de pessoas que buscam viajar para o mesmo destino por um preço mais acessível e de propiciar a abertura do mercado para as pequenas empresas familiares operadoras do mercado do fretamento de pessoas

A iniciativa chamou a atenção de fundos de investimentos e, em setembro daquele ano, a empresa já fechava a sua primeira rodada de capital, junto aos fundos Canary, Yellow Ventures e Fundação Estudar Alumni Partners. Acompanhando a nova dinâmica que chegou ao Brasil com a disseminação dos aplicativos no setor de transporte, a Buser presta atividade de intermediação de viagens, através de um aplicativo que conecta, de um lado, grupos de pessoas interessadas em viajar para um destino em comum e, de outro, um fornecedor de transporte privado.

A ideia é facilitar a mobilidade de pessoas, incentivando o uso de transportes coletivos e, consequentemente, reduzindo o tráfego de veículos individuais que indubitavelmente contribuem para a poluição do meio ambiente e alto número de acidentes nas estradas brasileiras. Mais do que isso. A startup tem como objetivo o aumento da eficiência da ocupação/ociosidade da operação do fretamento a redução do custo de viagens e o acesso a serviços de transporte coletivos de qualidade.

O aplicativo da Buser está disponível para download e seus serviços dependem de cadastro prévio, que pode ser feito por meio de e-mail, celular ou Facebook, mediante o fornecimento de nome completo, endereço eletrônico, telefone e criação de senha de acesso. Quando realizado o cadastro, o usuário insere o local de origem, o destino da viagem e consegue visualizar se já existem grupos para trajeto desejado - sendo possível a criação de um novo grupo caso não verifique nenhum outro -, bem como quantas reservas já foram realizadas e quais viagens já estão confirmadas.  Com o grupo de viagem formado, a Buser entra em contato com uma empresa de fretamento autorizada pela ANTT, que fornecerá o ônibus para a realização da viagem. Essa contratação é necessária porque a startup não é proprietária dos ônibus, não oferece passagens, não possui itinerário fixo e sequer é vinculada à viação específica. A viagem, portanto, dependerá não só de um grupo mínimo, mas também da disponibilidade de cada empresa prestadora do serviço de transporte por fretamento.

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Mas o fato de não ser proprietária dos veículos não significa que a Buser não esteja preocupada com seu estado. Pelo contrário: na posição de intermediadora, a empresa garante só se relacionar com veículos e empresas que estejam com suas obrigações técnicas e regulatórias em dia.

Prezando pela segurança, adequação e qualidade na operação dos ônibus, a Buser é exigente quanto a critérios de seleção das empresas que efetuam o serviço de transporte. O modelo de negócio da empresa está pautado nessa confiança e, por isso, os novos empreendedores das estradas brasileiras não medem esforços para garantir a regularidade dos carros e motoristas parceiros.

Com efeito, uma vez contratada a empresa e estabelecido o valor total do fretamento, o montante é rateado entre os usuários que efetuaram a reserva da viagem, os quais deverão confirmar os dados e realizar o pagamento por meio de cartão de crédito ou boleto bancário. Nota-se que valor da passagem não é fixo, uma vez que o frete da viagem é dividido entre o grupo que realizará a viagem, de modo que o valor é definido com base na quantidade de pessoas interessadas naquele trajeto. Isso é o que conhecemos como fretamento coletivo: sistema de rateio do custo total da contratação do serviço fretado entre os passageiros da viagem.

Nesse ponto, merece registro o fato de que intermediação realizada pela Buser, a qual se relaciona com contratos de fretamento, privados por natureza, encontra respaldo na liberdade econômica prevista na Constituição da República, sujeitando-se unicamente à regulamentação geral da União e à fiscalização de trânsito e segurança (art. 5, XIII e art. 170, parágrafo único). Nesse sentido, cabe aos órgãos de fiscalização o cadastramento das empresas de fretamento, bem como o exercício do poder de polícia para fiscalizar a segurança e as normas de trânsito.

É preciso que se diga, sem medo de errar, que não há nenhuma característica do transporte público de passageiros. A uma, porque não há rotas pré-estabelecidas e regulares de transportes, de modo que as viagens são contratadas pelos usuários e de acordo com suas próprias demandas. A duas, pois não há garantia de prestação de serviço de transporte, ou seja, a participação em um grupo de viagem é apenas sinalização de interesse em realizar determinada viagem, não sendo um contrato firmado com a Buser. A três, não há cobrança individual do valor de passagem, mas, sim, o rateio do valor do fretamento entre os usuários que realizarão a viagem. A quatro, as empresas de fretamento não utilizam terminais de passageiros, porquanto a infraestrutura pública é reservada aos delegatários do serviço público, e não aos serviços de transporte intermediados pela Buser. A cinco, os fretamentos contratados pela plataforma da Buser são disponibilizados tão somente aos usuários que se cadastram na plataforma, e não a todas as pessoas indistintamente.

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Considerando que o serviço intermediado pela Buser é de transporte privado, não cabe ao poder público exceder-se em seu poderes de regular e fiscalizar, criando barreiras à exploração e execução da atividade econômica desenvolvida pela empresa, limitando as opções dos usuários e criando reserva de mercado em prol de serviços públicos de transporte ou, até mesmo, a favor de empresas privadas que oligopolizam o setor - traço do capitalismo de laços, nas palavras de Modesto Carvalhosa.

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O poder estatal é constitucional e legalmente limitado, de modo que, quando atua desmedidamente, precisa ser contido. Na prática, no entanto, não é o que se observa. A ANTT, por ato infralegal, criou regra para viagens por fretamento, o chamado "circuito fechado", o qual impõe que elas sejam obrigatoriamente realizadas pelo mesmo grupo de pessoas nos trajetos de ida e de volta (Decreto nº 2.521/1998, artigos 3º e 36, e Resolução ANTT nº 4.777/2015, art. 3º, VII e XIV). Sob o pretexto de proteger a segurança coletiva dos usuários, a norma restringe direitos e versa sobre matéria atinente a transportes, razão pela qual jamais poderia ser estabelecida por ato normativo que não a Lei em seu sentido formal (Constituição da República, art. 178). Além disso, a fiscalização das atividades econômicas de transportes deve ser feita sempre com a observância do princípio da juridicidade, e não na forma exclusiva do regulamento (Constituição da República, art. 174). É por essa razão que, pelo fato de a exigência ser instituída por decreto e resolução, há manifesta violação ao princípio da legalidade, previsto no art. 5º, II, da Constituição da República.

Mas não é só. A exigência criada pelo Decreto nº 2.521/1998 e pela Resolução ANTT nº 4.777/2015 criou severa restrição econômica ao mercado de transporte por fretamento, comprimindo-o e impedindo o seu desenvolvimento. A propósito, não se trata de norma de mera organização material desse mercado, tampouco norma de segurança. Qual é a finalidade e a consequência dessa norma? Na realidade, o único resultado prático é a imposição de barreiras que dificultam as viagens por fretamento, protegendo o serviço prestado pelos delegatários prestadores do serviço público de transporte em detrimento dos usuários.

Em linhas simples, o que se nota é que a exigência do circuito fechado cria uma restrição sem precedentes ao serviço de fretamento e vai na contramão dos interesses sociais. Ninguém mais está disposto a pagar por serviços de péssima qualidade. As pessoas hoje anseiam por facilidade, conforto e economia e, no setor de transporte, isso é ainda mais nítido; não à toa há um crescimento significativo de usuários de empresas privadas de transporte alternativo que garantem a mobilidade urbana com excelência, custo benefício e maior conforto.

Autos de infração, apreensões de veículos, lobby e acusação de pirataria. Diferentemente da rodada de violência que atingiu o Uber, a 99 e a Cabify, já podemos prever um desfecho favorável para a Buser da mesma forma que não conseguimos crer de novo numa ilusão depois que ela é explicada. Afinal, a inovação já deu mostras que não pode ser vencida nem por ferro e nem por ouro.

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A Buser, além de "viagens de ônibus com mais conforto pelo menor preço", é uma sedutora alternativa contra o serviço público, cada vez mais precário, que coloca o usuário como seu refém graças a algumas anacrônicas normas que perderam, há muito, sua raison d'être. Há críticas ao Buser, claro, mas todas elas por ser estéreis na medida em que não brotam de uma reflexão honesta sobre a realidade. E a experiência mostrou, em circunstâncias que excluem qualquer outra interpretação, que o consumidor é quem escolhe - e ele já escolheu.

Como quase tudo no Brasil depende do ativismo do Poder Judiciário, espera-se que ele, deparando-se com discussões sobre a legalidade e viabilidade do serviço oferecido pela Buser, prestigie o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, entendendo inconstitucionais as leis que restringem ou proíbem a modalidade de fretamento eventual, na linha do que se verificou nos julgados que discutiam modalidades de serviços de transporte individual de passageiros cadastrados em aplicativo. Não é outra a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 449 e do RE nº 1054110, e não é outro resultado que se espera da ADIn 5.549, que discute a constitucionalidade da Lei nº 12.996/14, a qual dispensa licitação para transporte terrestre coletivo.

*Daniel Becker, sócio do Lima ? Feigelson Advogados e diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)

*João Pedro Brígido, associado na área de Resolução de Disputas no Lima ? Feigelson Advogados

*Natasha Rojtenberg, associada no Lima ? Feigelson Advogados

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